terça-feira, 21 de novembro de 2017

O gado humano dos concursos públicos e o solapamento do setor privado

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Fui fazer uma prova de concurso público nesse último domingo. O segundo ônibus que peguei para chegar ao local devido estava entupido de pessoas indo prestar o exame também. Naquele momento, tive a forte confirmação de que todos ali (incluindo eu) éramos gado. Enfurnados numa lata para fazer uma maldita prova que representa para alguns a última (ou única) alternativa de ter uma vida mais digna.

A revolta de ver tanta gente precisando se submeter àquele processo e a náusea de eu mesmo precisar estar lá é indescritível. Trata-se de um sistema nojento e cruel, onde a melhor opção de vida digna é disputar com “concurseiros profissionais” algumas vagas para fazer menos e ganhar mais (em relação ao setor privado) à custa justamente dos que fazem mais e ganham menos.

Não, não se trata de generalização. Falo de cargos administrativos, nos quais reina a lerdeza e o descaso no setor público. Lembro-me de um amigo, comentando sobre um conhecido que foi aprovado num desses cargos. Entrou dedicado, querendo acelerar os processos, e recebeu do chefe de setor um: "Calma, rapaz. Vamos ver essas coisa só semana que vem ou depois. Não precisa correr aqui".

Esse é um "bom" chefe. Um chefe pior, vendo o esforço do dedicado funcionário, colocaria tudo nas costas dele, como já ocorreu no passado com uma tia-avó. Ela diz hoje: "Não mostre muito serviço no setor público. Senão os descansados vão jogar tudo nas suas costas". Essa é a dinâmica do sistema. E não há problema. O salário está garantido e a estabilidade estão garantidos. Opa! Nem tanto. Uma hora a conta chega, não é mesmo? Um país que incha sua máquina pública, incentiva a cultura concurseira, desestimula o empreendedorismo e cria um ambiente péssimo para a melhoria das condições dos trabalhadores no setor privado, uma hora vai à bancarrota. Uma hora vai faltar dinheiro até para o setor público. E se falta dinheiro, obviamente quem vai receber primeiro e sem interrupções não são os que estão nos postos mais baixos dessa pirâmide, mas sim políticos, secretários, ministros, assessores, presidentes e diretores de estatais, juízes, procuradores, em suma, todos os que ganham mais, tem mais benefícios e menos trabalham. O sistema, no fim das contas, acaba engolindo até o concurseiro que tanto almejou estabilidade e salário alto. 

Isso não é uma crítica a quem presta concurso, mas ao sistema. Aquele que presta concurso é mais uma vítima. Só há muitos concurseiros hoje porque (1) não existem muitas opções melhores de emprego fora da esfera pública, (2) há muitos concursos, (3) pagam muito bem, (4) oferecem estabilidade. Esse é o sistema. E ele começa com o solapamento do setor privado.

Eu trabalho no setor privado e sei como a coisa funciona. Tomemos minha empresa como exemplo. Possui cerca de 150 funcionários. Se cada um receber um aumento de 100 reais no salário, isso representa um aumento de 15 mil reais mensais de custo para a empresa. Acha pouco? Mas não é. Eu faço parte do setor financeiro/administrativo da empresa e conheço todas as contas. Vejamos o que é esse custo para nós.

Quinze mil é o valor do Vale Transporte de um mês de todos os funcionários. Quinze mil pagam o plano de saúde de um mês e meio dos funcionários que o aderiram. Ou dez meses de materiais de limpeza e escritório para a empresa. Ou as contas de luz de todas as unidades (em época de inverno, pois verão quase dobra). Ou três meses de contas de água. Ou um mês e meio de telefone e internet. E lembre-se: estamos falando de um aumento de míseros 100 reais no salário de cada um, o que não dá nem para as compras de três dias de alimentação numa casa com mais de uma pessoa. E sabe de uma coisa, amigo? Não há esses 15 mil sobrando na empresa. Quer entender o motivo?

É que gastamos 15 mil mensais de ISS, 7 mil mensais de COFINS, 2 mil de PIS, 60 mil trimestral de IR, 25 mil trimestral de CSLL, 5 mil de IR sobre aluguéis, 4 mil de IPTU's, 1 mil de taxas municipais, 35 mil de INSS, 10 mil de FGTS e ainda os impostos indiretos embutidos em cada produto e serviço. E há retorno para o cidadão? Nós sabemos que não. Ou seja, estamos jogando dinheiro fora. Dinheiro que poderia ser usado para pagar melhor os funcionários e fazer mais investimentos na empresa. Sem dúvida mais da metade do faturamento da empresa vai embora em impostos diretos e indiretos que não voltam para o cidadão.

E o pior: pagamos duas vezes. O trabalhador do setor privado recebe pouco porque a empresa é asfixiada pelos impostos e porque ele mesmo paga muito nos produtos que compra para casa (também pelos impostos). Na verdade, ele paga mais que duas vezes, pois também paga pela corrosão do seu dinheiro gerada pela inflação; pelos juros altos necessários quando a inflação precisa ser controlada; pelos déficits do setor público; pelo aumento da máquina estatal; pelos empréstimos que o governo pega; pelo dinheiro desviado; pela ineficiência; pelos serviços privados que é obrigado a usar, já que os públicos não funcionam direito.  

Tem mais. O problema não são só os impostos, mas a enorme burocracia. É sabido que em diversos países uma pessoa demora um dia (às vezes, alguns minutos) para abrir e regularizar uma empresa. No Brasil, a média para isso é superior a 100 dias. Isso para abrir. Para manter é mais outra dor de cabeça. E eu sinto isso na pele, no setor administrativo da empresa em que trabalho. Veja um exemplo: uma secretaria municipal exigiu um monte de documentos para uma unidade continuar funcionando. Juntamos tudo. Então, se percebeu que o Alvará está com um pequeno erro no endereço. Falta um andar na descrição. Sabe o que significa? Se não alterar dentro de dez dias, a unidade não pode prestar alguns serviços no ano que vem inteiro!

Vamos resolver? Vamos! Mas não é tão fácil. Para mudar o Alvará, é precisa mudar o IPTU. Para mudar o IPTU, o Contrato Social, o CNPJ e o Certificado dos Bombeiros precisam estar iguais. Cada documento desse você só altera de posse de outros tantos documentos, em lugares diferentes, fazendo procedimentos distintos. Todos eles demoram mais de uma semana para ficar prontos. E alguns têm custos. Para alterar uma frase no Contrato Social, por exemplo, são mais de 2 mil reais. Em alguns municípios, para alterar alvará, vão quase mil reais. 

Ademais, para fazer tudo isso, você precisa ou de funcionários próprios à frente do trabalho ou de uma empresa terceirizada. Nos dois casos, haverão custos e perda de tempo. Você já percebeu que nesse exemplo que dei, é impossível resolver tudo em dez dias. Ou seja, ano que vem uma unidade da nossa empresa não poderá oferecer alguns serviços. E por quê? Por um mísero erro num documento. 

Quer outro exemplo? Recentemente fizemos um financiamento via banco. Muitos documentos são pedidos. Um deles é a "Certidão de Inexigibilidade Ambiental" que serve para comprovar que... Não precisamos de uma Certidão Ambiental! O detalhe é que nossa empresa fica num meio totalmente urbano e seus serviços são meramente educacionais. Meio óbvio que não destruímos nenhuma floresta ou rio, né? Não para o governo. Por isso, baixaram uma lei que obriga as empresas que querem empréstimos a apresentar esse documento. Onde podemos conseguir? Na secretaria de meio ambiente da prefeitura. Bom, juntei diversos documentos para dar entrada, levei até lá e esperei um mês para receber uma mísera folha de papel. Razão da demora? Excesso de pedidos de empresas por esse documento. Por quê? Por causa da lei inútil que fizeram. 

E quando além das leis inúteis e da burocracia, temos a ineficiência do Estado nos atrapalhando a seguir as próprias leis do Estado? Há pouco tempo o governo suspendeu sumariamente nossa inscrição estadual. Como proceder? O site não explica. Busquei um telefone na internet e liguei para um polo da secretaria da fazenda do estado."Ah, não é aqui. Tem que ligar para a agência do bairro de vocês", me informou a atendente. Ela me passou quatro números e avisou que algumas pessoas estavam reclamando sempre que ninguém atendia. Liguei para os quatro e... Não fui atendido! E aí? Como resolve o problema?

Imagine o trabalho que é manter em ordem Inscrição Municipal, Estadual, CNPJ, Contrato Social, IPTU, Alvará, Bombeiros, Pareceres periódicos de Secretarias Municipais e Ministérios, Certidões, Certificados, etc. Mude uma coisa e tudo precisa ser mudado. Invente de criar uma filial ou fechar uma e você morre numa grana e num tempo desgraçado para resolver toda a documentação. E se deixar de lado e for pego pela fiscalização, será multado e até proibido de funcionar. 

O que muita gente não percebe é que impostos numerosos e burocracia gigante afetam muito mais as pequenas e médias empresas (e, por tabela, o cidadão comum) do que as grandes. Para a grande empresa é fácil pagar um dinheiro sujo para fugir da fiscalização, obter uma facilidade, acelerar um processo burocrático, comprar favores, obter isenções fiscais futuramente. Mesmo que ela não use desses expedientes escusos, por ter mais dinheiro, pode sobreviver com mais facilidade a esse cenário extremamente regulado da economia. E, sentindo-se muito apertada, pode mais facilmente aumentar o valor de seus produtos e serviços ou se mudar da cidade, estado ou país. Mas e as empresas menores? E o cidadão comum?

As empresas menores vão perder muito tempo e dinheiro para o governo, o que dificultará o seu crescimento e talvez as leve à bancarrota. E o cidadão comum trabalha nessas empresas. Por essa razão ganhará pouco, trabalhará muito e eventualmente será demitido. Ele sofrerá porque a empresa sofre e também sofrerá diretamente nas mãos do governo. Veja esse exemplo pessoal recente: entrei no bankline do meu banco para pagar uma conta. Então, fui informado que meu CPF estava bloqueado. Eu não recebi carta ou telefonema do governo sobre isso. Soube pelo banco, que me avisava: se não regularizar, pode ter sua conta corrente cancelada.

Fui até uma agência da receita federal ver qual era problema (já que o site da receita não informa). Lá um funcionário abriu um programa furreca, que mais parecia um MDOS, com aquela toda preta e sem uso de mouse. Era ali que se fazia alterações no CPF. E sabe qual era o problema? Não tinha o número do título de eleitor nos dados do meu cadastro. O número do título! É um dado que o próprio governo tem! Mas seus órgãos não se comunicam e quem precisa ir lá resolver o problema sou eu. Algo que, aliás, poderia muito bem ser resolvido pela internet. Ou seja, trabalho para sustentar alguém que faz coisas como alterar dados no meu CPF e ganhar o triplo do que ganho, no mínimo. O procedimento não levou cinco minutos.

Tudo bem, resolvido, né? Não. Por causa da idiotice do governo, o banco cancelou meu limite bancário. E esse limite sempre me salvou. Passei um ano vivendo só de limite, quando fiquei desempregado e estava pagando contas de uma mudança da família. Eu pagava 150 reais de juros ao mês. Muito dinheiro? Sim! Mas em compensação, eu tinha 5000 reais disponíveis todo mês, dos quais usava 1500. Sem esse empréstimo constante e ininterrupto, eu não teria vivido.

Arrumei um emprego e resolvi minhas dividas faz tempo. Conta azul. Mas deixei o limite lá para emergências, como sempre foi. Sei controlar limite e cartão de crédito. E para meu contexto, é importante eu ter essas reservas, que tem ajudado muito em casa com necessidades. 

Pois bem. Fui agora correr atrás do banco para comprovar que resolvi o problema do CPF. Comprovei. Mas para reativar o limite, precisei comprovar vínculo empregatício, salário, etc. Fiz. Mais quinze dias de espera. E então... Limite revisto e reduzido para 600 reais. Motivo? País em crise, o banco oferece menos crédito. Aqui note que o governo é duplamente culpado. Ele me fez perder limite com a palhaçada do CPF e fez o banco reduzi-lo por causa da crise.

Explico a crise: os governos Lula e Dilma inflaram a moeda, derrubaram taxas e incentivaram os bancos a oferecerem créditos. Com a economia deslanchando, incharam mais ainda o Estado (o que se tem feito quase ininterruptamente desde Vargas). Mas tudo o que é artificial um dia acaba mal. Com a volta da valorização do dólar (que se manteve alguns anos baixo, possibilitando a expansão de moeda brasileira sem aumento de preços), a inflação começa a aparecer. Daí os juros sobem para conter o problema, como sempre. Os endividados (empresas e pessoas físicas) se veem com dificuldade de pagar suas parcelas, a inadimplência sobe e o consumo reduz. Sem consumo, empresas reduzem os lucros ou vão à falência. Com inadimplência de pessoas e empresas, bancos reduzem o crédito. E eu acabo perdendo uma reserva que me servia de garantia. 

O meu problema não acaba aí. Com menos empregados e menos empresas no país, há menos arrecadação. Como o governo gastou demais, o déficit fica enorme. Resultado: as empresas aumentam os preços para se manter e o governo aumenta impostos para pagar as dividas que tem. Quem perde? Mais uma vez eu e meus companheiros do setor privado. A diferença agora é que nessa pirâmide ridícula, nosso trabalho não suporta mais a máquina pública. Ela se tornou grande demais, ao mesmo tempo que nós fomos sufocados ao extremo pelo governo. Agora que entramos em colapso, colapsa também o setor público.

O sistema não cessa de ser cruel. Porque não é todo o setor público que sofre, como eu disse. Sofre primeiro quem ganha menos e trabalha mais. Assim, policiais, bombeiros, professores (sobretudo dos ensinos fundamental e médio), médicos e enfermeiros serão os primeiros afetados. O salário e os benefícios dos políticos, seus apadrinhados e todo o alto escalão do judiciário estão mais que garantidos. 

Aqui retorno ao setor privado solapado, a base desse sistema pútrido. O trabalhador pobre do setor privado, como eu, vê que nesse setor não vai conseguir um bom salário e estabilidade. Olha então para o tanto de concursos públicos e se lança nesse caminho. O efeito é devastador. Perde-se o estímulo de empreender. Perde-se a confiança num crescimento pessoal no setor privado. Cria-se antipatia pelas empresas particulares, alimentando a falsa crença de que pagam mal pura e simplesmente por exploração e nada mais. Com a disparidade entre o emprego público e o privado, cultiva-se um apreço cada vez maior pelo sonho de estabilidade, salário alto e pouco trabalho. A função já não importa. A produtividade menos. Se aparecer emprego público para cavar buraco e depois tampá-lo (o que é inútil para a sociedade), está ótimo! O importante é ganhar muito dinheiro com isso e nunca ser demitido.

O povo, inebriado da cultura concurseira e estatista, já não quer produzir. E o vírus contamina até os melhores. Sobretudo quando lá dentro. Não há pressão, não há risco de falência, não há competição entre empresas. O sistema produz o ambiente perfeito para que nem os melhores  e mais honestos consigam dar o melhor de si. E nós, do setor privado, pagamos. O sistema nos envergonha; impõe sobre nós duas opções: ou mal sobrevivemos, sustentando toda a máquina pública e sendo sufocados, ou passamos a fazer parte da máquina, sendo sustentados pelo setor privado e sufocando-o. E todos juntos sustentarão e serão sufocados pela elite política e judiciária.

O sistema gerará as piores desigualdades e absurdidades. Quanto mais a máquina pública  crescer, mais pagaremos por funções inúteis, burocracias infindas, benefícios parlamentares, facilidades a grandes empresas, auxiliares administrativos ganhando dez vezes mais que os do setor privado e trabalhando dez vezes menos, etc. Pagaremos, por exemplo, por uma empresa de Correios pública que não entrega mais encomendas em área de risco (eu não recebo mais encomendas onde moro), atrasa para entregar e gera déficits de 2 bilhões ao ano. E sonharemos em trabalhar lá. Vergonhoso e insustentável, sem dúvida. Uma hora a pirâmide não suportará.

Sustentamos milhares de burocracias, regras e leis complexas; milhares de políticos, cargos comissionados, conselhos, secretarias e ministérios; centenas de empresas estatais; dezenas de agências reguladoras; fundo partidário, lei Rouanet, carnaval, times de esportes, filmes, peças, teses e dissertações sobre inutilidades ou putarias, exposições de arte degeneradas, obras em países ditatoriais, empréstimos baratos para grandes empresas e muito mais! Tudo isso está sob nossas costas em forma de altos tributos, tempo perdido, dor de cabeça e uma consequente economia impossível de melhorar nossa vida. E o que nos resta? Retroalimentar o sistema sonhando com um cargo público. Não, não é hipocrisia, mas sobrevivência. E assim somos obrigados a morrer ou ajudar a matar.

Então, voltamos ao concurso. Para quem não passa, a vida continua rude. Fica o gosto amargo de quem pagou mais uma taxa para engordar os bolsos do governo, se submeteu a uma prova que não garante bons funcionários (apenas elimina gente, já que não dá pra aprovar todo mundo) e vai continuar tendo seu salário, tempo e vida sugados. 

Eu entrei no ônibus com toda aquela gente e tudo me pareceu ridículo. Não nós. A situação. Ali a maioria estava lutando para sobreviver, para ter uma vida melhor, mais digna, submetendo-se à triste realidade de compor o setor que se alimenta de cada um de nós hoje. E assim é a vida no Brasil. Naquela lata quente, com rodas, todos eram gado. Alguns deixarão de ser em alguns meses e nos sugarão. Outros continuarão sendo gado e sendo sugados. E o Estado brasileiro permanecerá inimigo de todo o povo.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Sete observações sobre o liberalismo econômico

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Resolvi elencar algumas observações minhas sobre liberalismo econômico. São conclusões às quais cheguei com o tempo, a partir de leituras e experiências. Separei em sete pontos.

1. Liberalismo não é uma panaceia. Embora muitos dos primeiros liberais, influenciados pelo germe redentor do iluminismo, tenham observado esse sistema com grande empolgação, o fato é que como qualquer outro sistema humano, ele não pode criar um mundo perfeito ou próximo a isso. O liberalismo é a economia do possível, tal como o conservadorismo é a política do possível. O não reconhecimento disso distorce suas próprias bases como, por exemplo, a noção de pessimismo ou ceticismo antropológico (o homem é inclinado à imperfeição). 

2. O liberalismo sozinho não constrói, tampouco muda uma grande nação em termos políticos, morais, espirituais e culturais. É um engano achar, por exemplo, que o liberalismo, por si só, é responsável pelo alto nível de honestidade de alguns povos. A honestidade coletiva se constrói ao longo de séculos de valores morais e éticos cultivados, protegidos e passados de geração em geração. Assim, um povo pode ser mais honesto que outro independente de modelo econômico adotado.

A importância do liberalismo nessa equação é que ele se encaixa melhor com um ser humano inclinado ao mal. Em outras palavras, ele possui maior potencial para impedir que o despotismo estatal. Uma sociedade honesta, mas com economia muito interventora tende a alimentar a corrupção, ou o autoritarismo, ou a ineficiência, pois mesmo o grau de honestidade sendo alto, o homem continua tendo propensão à imperfeição. Por outro lado, uma sociedade de economia liberal, mas com povo desonesto, tende a macular o liberalismo.

O liberalismo, portanto, serve como um delimitador da maldade humana, assim como também o são o Estado de direito, a tripartição dos poderes, a democracia representativa é a transparência nos procedimentos públicos. Eles são muito úteis numa sociedade civilizada e com cultura moral e espiritual elevadas (dentro das possibilidades humanas). Mas pouco podem fazer em uma sociedade de ímpeto mal, que além de inclinada à imperfeição, cultiva com afinco os piores vícios. Na verdade, numa sociedade assim, sequer pode surgir essa instrumentos de delimitação humana, visto que as pessoas não estão interessadas em travar nada. 

Em suma, do ponto de vista histórico, esses mecanismos de limites para o ser humano só puderam emergir porque muitas sociedades se tornaram mais civilizadas, mais sensíveis moralmente, menos bárbaras. E o grande responsável por isso, em nossa era, pelo menos culturalmente, foi o cristianismo, ficando a moral judaico-cristã entre os povos e resgatando algumas boas ideias políticas originadas na Grécia que não tinham ido adiante. 

3. Sabendo que o liberalismo econômico é positivo, mas não civiliza ou moraliza sozinho uma nação, deve ser concebido sempre em união com uma cultura moral e intelectualmente sólida, bem como mecanismos políticos firmes de contenção da ganância e da violência humanas. Qualquer proponente do liberalismo que não atente para esses tópicos está fadado ao fracasso. Seu projeto de economia não mudará a sociedade. Talvez até crie melhores condições e riqueza. Mas riqueza para um povo é um governo corruptos não geram uma boa estrutura social. 

4. O liberalismo também deve andar de mãos dadas com o conservadorismo. A cosmovisão conservadora coloca o liberalismo com os pés no chão, impedindo que ele faça do modelo liberal um tipo de revolução. O liberalismo, ressalta-se, deve ser visto como a economia do possível e não mais que isso. 

5. Considerados esses fatores, o liberalismo, em maior ou menor grau, pode ajudar muito uma sociedade já bem estruturada moralmente a ser mais mais honesta, mais rica e mais virtuosa. Há, na economia liberal, potencial para gerar virtudes no povo como o espírito empreendedor, as associações não governamentais de assistência social, a responsabilidade individual, a visão da família como pilar social e a autonomia em relação ao governo; e virtudes nos governantes como o respeito à limitação do Estado.

Por outro lado, o estatismo tende a corroer esses valores e criar vícios sociais. No povo, tende a gerar a delegação de responsabilidades individuais ao governo, o desprezo à atividade empreendedora (deixando-a entregue apenas aos gananciosos), a cultura do cargo estatal como meta de vida (seja por indicação ou concurso), o hábito de não cuidar bem das coisas públicas, o desestímulo ao trabalho eficiente em cargos públicos, a extrema dependência do Estado, a exigência de cada vez mais funções para o governo (e menos para a sociedade) e a substituição da autoridade familiar pela autoridade estatal. No governo, tende a atrair políticos corruptos, oportunistas, autoritários e idealistas, que se esforçarão para criar um Estado cada vez mais poderoso, tornando-o mais exposto à corrupção, ao despotismo e/ou à ineficiência. 

6. É um mito crer que o liberalismo está baseado em um egoísmo do tipo mesquinho. É preciso entender o conceito observado primeiramente por Adam Smith a respeito do egoísmo como base do crescimento econômico. O egoísmo aqui não é definido em termos positivos ou negativos, mas neutros. A melhor palavra para descrever talvez seja amor próprio. Todos precisam ter amor próprio e é, em geral, pelo amor próprio que nos esforçamos em nossos trabalhos, a fim de prover nosso sustento. O amor próprio se torna ruim quando nosso amor não se estende às outras pessoas. Esse é o egoísmo mal ou mesquinho. Mas o amor próprio que não impede o amor pelos outros, nem o altruísmo, é um sentimento bom e importante. 

Do ponto de vista estritamente econômico, tanto o amor próprio bom quanto o ruim tendem a gerar o mesmo efeito: produtos e serviços melhores, mais abundantes e mais baratos. Isso porque todos os agentes econômicos geralmente irão se esforçar para ganharem a concorrência, no intuito de terem o melhor para si. E para ganhar a concorrência, arrumam formas de atrair clientes com preços e/ou qualidades melhores. Claro que o caso aqui não é uma regra infalível. A relativa eficácia do modelo depende de algumas circunstâncias, dentre as quais uma sociedade realmente livre economicamente, onde o governo não beneficia uns em detrimento de outros (Smith fala sobre isso em seus livros). E a própria honestidade do povo também será essencial para a saúde do processo. Os indivíduos de uma sociedade vil arrumarão mais constantemente formas de se beneficiar sem se esforçar para beneficiar os demais.

O ponto a ser enfatizado aqui, no entanto, é que o liberalismo não obriga o indivíduo a ser egoísta no sentido mal. Tampouco necessita desse tipo de egoísmo (embora possa se beneficiar dele em algum grau). O amor próprio saudável, que mantém sentimentos altruístas, é melhor para a sociedade e para o próprio liberalismo, pois possibilita a manutenção de um ambiente de negócios mais ético, uma concorrência mais saudável e dentro das regras legais estabelecidas, uma estrutura legal mais rígida e a existência de indivíduos (empreendedores ou não) e associações livres dispostos a ajudarem socialmente os mais necessitados. 

Uma vez que o liberalismo possui em si a capacidade de gerar mais riqueza, uma sociedade moralmente saudável poderá se utilizar bem desses recursos para ajudar livremente, o que reforça o senso de responsabilidade individual e, por conseguinte, social. Aqui, ressalta-se, responsabilidade social não se confunde com responsabilidade estatal ou governamental, como ocorre nos regimes econômicos estatistas.

7. Em geral, as sociedades mais bem sucedidas chegaram aonde estão hoje por uma confluência de fatores. O primeiro fator é a modelação da cultura por meio da moral judaico-cristã (ou algum sistema moral semelhante e igualmente impactante). Isso tanto no sentido da conduta ética, quanto no sentido racional, suplantando modelos antigos de politeísmo e teocracia, historicamente frágeis e inferiores quanto a essas questões. 

A cultura remodelada cria condições para o surgimento de um povo mais racional e polido, de onde emergem homens com ideias positivas de limitação do poder do Estado, império das leis, garantia de direitos humanos, sistema de pesos e contrapesos, democracia representativa, economia mais livre, etc. 

Implantadas essas ideias, a cultura e o tempo serão responsável pelo aperfeiçoamento das mesmas. E o aprimoramento da estrutura político-econômica será, por sua vez, um fator importante para a manutenção da sociedade dentro de determinados limites. 

O processo, contudo, está sujeito à interferências das mais diversas, tanto no que se refere à degradação da cultura, quanto à degradação do próprio sistema político-econômico. O norte para a ser seguido no intuito de evitar essas degradações diversas é sempre resgatar os valores culturais responsáveis pela civilização/moralização da sociedade e pela germinação das estruturas político-econômicas mais elevadas e eficazes para o ser humano como ele é.

Ainda sobre nazismo e fascismo

2 comentários:
Ainda sobre a questão do nazismo e do fascismo, como eu disse no meu último artigo, o principal da discussão não é o nome, mas o mapeamento das ideias. Em outras palavras, o problema não é você ser de direita e chamarem o nazismo de extrema direita. O problema é você defender uma visão cultural e política conservadora e econômica liberal e alguém vincular isso a Hitler e Mussolini, quando não tem absolutamente nada a ver.
O fato é que o conservadorismo e o liberalismo econômico, se extremados, não se tornam nazismo e fascismo. Podem até se tornar coisas ruins, mas não nazismo e fascismo. Por outro lado, se você defender uma economia interventora e a transformação total da sociedade através do governo, essa posição extremada vai levar inevitavelmente à modelos bastante semelhantes a nazismo e fascismo.
O desafio continua: tente encontrar em autores como Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Raymond Aron, Eric Voegelin, Eric Von Kuehnelt-Ledding, Ortega Y Gasset, Russell Kirk, Jonh Gray (conservadores), Adam Smith, Frederic Bastiat, Carl Menger, Eugen von Bonh-Bewerk, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Ayn Rand, Milton Friedman e Thomas Sowell (liberais) algum traço de defesa do ou inspiração para nazismo e fascismo. Será um fracasso retumbante. E esses são os principais nomes da direita. Por outro lado, olhe para as ideias de Rousseau, Hegel, da Revolução Francesa, do marxismo, do positivismo, do darwinismo social, das diferentes doutrinas anticlericais e perceba que as raízes totalitárias e a sanha redentora estão lá.
O nome não é o mais importante. Mas o mapeamento. Você pode não brigar pelo nome. Mas é seu dever Mostar quê suas ideias não levam, em nenhum mundo possível, a movimentos totalitários de redenção. Tenha em mente, contudo, que é justamente pelos rótulos que a esquerda vai te jogar no mesmo saco de nazistas e fascistas, e te chamar de extrema-direita só por discordar de mulheres nuas protestando na rua e homens bomba destruindo a Europa.
Winston Churchill já dizia que os fascistas do futuro se chamariam a si mesmos de antifascistas. Seu dever é mostrar quem são os fascistas de verdade. E não é você.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O nazismo e o fascismo no espectro político

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Já escrevi alguns textos sobre a relação entre nazismo, fascismo, direita e esquerda [1]. Como está na moda da semana, resolvi sintetizar aqui o que sei. Antes de começar, julgo importante explicar algo. Muitas pessoas tem dito que é inútil discutir qual é a posição do fascismo e do nazismo no espectro, pois cada lado diz uma coisa, não há consenso, tampouco utilidade prática em buscar uma resposta final. Mas na verdade a discussão é importante sim. Não pelo rótulo, mas pelo mapeamento das ideias.

Pouco importa os nomes que fascismo e nazismo receberão, mas é muito relevante descobrir de onde suas ideias se originaram, a fim de que possamos evitar o surgimento de movimentos semelhantes. A classificação é possível mediante modelos baseados no diagrama de Nolan, no qual há quatro quadrantes, dividindo os dois lados do espectro em pelo menos dois grandes grupos. Dito isso, começo a elencar os pontos principais.

Pontos principais sobre nazismo e fascismo

1. A teoria nazista, exposta por Adolf Hitler em sua obra Mein Kampf, faz parte da tradição de ideologias seculares redentoras que se iniciou a partir do iluminismo e teve seu ponto alto no século XX. Essas ideologias possuem em comum os seguintes pressupostos: (A) a sociedade precisa ser redimida do mal e reestruturada; (B) há um inimigo que perpetra esse mal, mantendo uma velha estrutura social; (C) o ser humano pode redimir o mal da sociedade e reestruturá-la através de um bom projeto de governo nesse sentido e governantes capazes de representar fielmente os anseios do povo; (D) esse governo redentor deve ter grande poder político, econômico e cultural para emplacar esse grande projeto. Em suma, a ação política salvará o mundo.

Fizeram/fazem parte dessa tradição o jacobinismo, os diversos tipos de socialismo, o positivismo, o marxismo, o darwinismo social, o sindicalismo revolucionário, a socialdemocracia original, o fascismo italiano, o nazismo e outras correntes. Todas elas podem ser conceituadas como religiões políticas.

2. Ainda conforme as ideias expostas em Mein Kampf, os judeus pretendiam subordinar todas as nações ao que Hitler chamava de "Capitalismo Internacional Judaico". Ou seja, para o nazismo hitlerista havia um plano judaico de dominação mundial. Hitler chega a essa conclusão baseado no fato de que os judeus estavam espalhados por toda a Europa, ocupando posições importantes como donos de jornais, banqueiros, políticos, sindicalistas, etc. Então, era um povo gigante fora de sua terra de origem, sugando as riquezas de outros povos e ocupando todas as posições.

3. Segundo a doutrina nazista, o marxismo e a socialdemocracia eram dois movimentos mentirosos, criados por judeus para dar uma falsa impressão de luta contra o capitalismo é a favor do proletariado. A intenção, contudo, era a mesma dos judeus burgueses: subordinar o mundo ao grande capital internacional judaico. A prova disso, conforme a explicação dada em Mein Kampf, era justamente o fato de que as lideranças desses movimentos todos tinham raízes judaicas. Karl Marx, aliás, era de família judia, o que só reforçava o mito criado por Hitler.

4. A oposição da doutrina nazista em relação ao marxismo e a socialdemocracia, portanto, não se dava pelos princípios proclamados de luta contra a desigualdade ou da defesa de uma economia planificada, do controle governamental sobre o empresariado e da construção de uma nova sociedade (mais justa). A oposição se dava, conforme explicado detalhadamente em Mein Kampf, por esses dois movimentos serem falsos, ferramentas judaicas para engano do povo. Daí a conclusão de que o único socialismo verdadeiro era o nacional socialismo (nazismo).

5. O nazismo se colocava como o socialismo verdadeiro porque lutava de verdade contra o capitalismo mundial. Combater de fato esse sistema global era, para o movimento, se opor ao internacionalismo, que atendia aos interesses dos capitalistas imperialistas, desejosos de um mundo sem fronteiras dominado por meio de seus escritórios. Combater de fato esse sistema global era atacar os principais capitalistas imperialistas do mundo: os judeus. Combater o capitalismo realmente era se opor à farsa do marxismo e da socialdemocracia, que de socialistas não tinham nada, pois defendiam o internacionalismo, dando assim o poder nas mãos do imperialismo judaico.

6. A doutrina nazista, à semelhança da marxista, buscava se firmar "cientificamente" também. Para Marx, o comunismo não era uma ideia. Já que ideias, para Marx, apenas justificavam as condições materiais de determinado tempo. O comunismo era uma ciência, uma ciência exata, a observação dos fatos como eles são. Essa definição está clara no Manifesto do Partido Comunista e também é uma tradição iniciada no iluminismo. Cada autor procurava dar à sua ideologia de redenção um status de ciência exata. Isso pode ser visto claramente, por exemplo, no positivismo, de Comte, e no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de Rousseau.

Seguindo a tradição, o nazismo se fiou no darwinismo social. Para a doutrina, o ser humano era composto por raças mais evoluídas e menos evoluídas. A raça ariana, da qual fazia parte os alemães, era o supra sumo da humanidade em inteligência, moralidade, força, beleza, etc. A raça judaica, por sua vez, era a pior das raças, a mais depravada. Talvez por isso tenham se tornado capitalistas. O nazismo, portanto, combatia não apenas um sistema econômico com sanha imperialista, mas um sistema econômico usado por uma raça vil e ordinária.

7. O projeto econômico nazista era de cunho antiliberal. O livre mercado era um mal. Apenas o forte controle do Estado poderia impedir distorções sociais, manter a ordem e usar empresários e empregados para o bem da sociedade.

8. O fascismo italiano, proposto por Benito Mussolini, mantinha pelo menos uma grande diferença em relação ao nazismo de Hitler: não focava nos judeus como o grande mal do mundo. Pelo menos não em sua origem. A visão fascista de combate era mais generalista: o capitalismo internacional é o monstro. E contra esse grande monstro as armas eram o socialismo e o nacionalismo.

9. Para entender o socialismo fascista é preciso entender o processo de mutação pelo qual passou o pensamento de Benito Mussolini. O ditador italiano foi um marxista ortodoxo e militante durante toda a juventude, fazendo parte do PSI (Partido Socialista Italiano) e editando jornais socialistas. No entanto, influenciado por ideais revolucionários mais pragmáticos, como o "sindicalismo revolucionário", de Georges Sorel, ele passou a defender conceitos que se distanciavam do marxismo ortodoxo. A expulsão de Mussolini do PSI se deu após sua forte adesão à participação da Itália na Primeira Guerra Mundial. Para o partido, aquela guerra era capitalista e a Itália não deveria se intrometer. Para Mussolini, contudo, a participação poderia trazer benefícios à Itália.

10. O pragmatismo adotado por Mussolini o levou a desenvolver um novo tipo de socialismo, menos utópico e mais realista. Na nova doutrina, concebia-se o Estado como uma entidade insuperável, em oposição ao mito utilizado por marxistas de que o Estado se desfaria naturalmente após a ditadura do proletariado. Ele percebeu que isso era mentira e que o objetivo do socialismo é (e sempre foi) o poder supremo do Estado.

Pelo pragmatismo soreliano, Mussolini moldou sua visão sobre o uso de mitos políticos como força motriz para a condução das massas. Para Sorel, que foi um sindicalista revolucionário e marxista heterodoxo, o mito político era um conjunto de imagens com capacidade para gerar reações antes de qualquer análise refletida. Em outras palavras, não importava que uma ideia fosse mentirosa. Desde que ela servisse para impulsionar as massas, isso era suficiente para os fins desejados pelo socialismo. Mussolini captou essa ideia e, por esta razão, passou a se utilizar das ideias de religião, pátria e raça, que evocavam sentimentos fortes e capazes de unir a sociedade italiana em prol do projeto político fascista.

11. Na visão econômica, o fascismo italiano entendeu que se o Estado concentrava tudo em suas mãos, não havia necessidade de uma estatização direta da economia. Um controle corporativista se mostrava mais simples, eficiente e gerava uma aparência aceitável para o empresariado. Tanto o fascismo italiano, quanto o nazismo alemão perceberam que a manutenção de empresas privadas na sociedade não só evitaria uma difícil e custosa luta contra grandes empresários, como também abriria a possibilidade de o Estado se beneficiar do dinheiro, da organização, do poder e do apoio desses grandes empresários para os fins do regime. Para isso, bastaria garantir seus lucros e a proteção contra a concorrência, o que uma economia planificada faz muito bem.

12. A visão econômica proposta pelo fascismo e o nazismo são exatamente a mesma de outros tipos de socialismo e do marxismo em seu estágio intermediário. Todo socialismo propõe uma intervenção cada vez maior e mais ampla do governo na economia até o estágio de uma economia planificada. O marxismo, o mais extremo dos socialismos na área econômica, sustenta não só a escalada até uma economia planificada, mas até uma economia totalmente estatizada. O que difere cada tipo de socialismo, na área econômica, é apenas o grau de intervenção e o objetivo final. Isso implica que o natural de uma economia marxista é que ela passe por estágios corporativistas.

Na verdade, essa é a lógica inescapável da planificação da economia. Na medida em que o governo intervém mais com impostos, regulações, burocracias, agências reguladoras, expansão de crédito, etc., mais dificulta a atividade empresarial no geral, o que torna o empreendedorismo uma atividade restrita à poucos grandes homens com boas relações com o governo. Estes darão ao governo apoio moral e financeiro. Receberão do governo a garantia de que nenhuma outra grande corporação aparecerá para tirar seus lucros. Sem o governo, essas grandes corporações não existem, pois é a relação com o governo que decide quem sobrevive. Então, elas se tornam sustentáculos do regime. Aqui já se encontra a planificação da economia. Lenin chamava esse estágio de capitalismo de Estado e o definia como o estágio anterior ao socialismo. As relações entre a planificação da economia e os diversos tipos de socialismo é lógica e perceptível.

Considerações sobre os pontos elencados

No lado direito do Diagrama de Nolan há o quadrante dos conservadores e o quadrante dos liberais. Os conservadores se definem historicamente por ser contrários à ideologias políticas redentoras, revoluções sanguinárias como métodos eficientes para reestruturar a sociedade e qualquer projeto que intente resolver problemas sociais destruindo pilares da sociedade, tais como a família, a religião e a moral judaico-cristã. A política conservadora é a política da prudência, da forte orientação pelos ensinamentos do passado e das reformas necessárias sempre baseadas na conservação dos pilares sociais.

Uma leitura nos escritos de Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Eric Voegelin, Erik von Kuehnelt-Leddihn, José Ortega Y Gasset, Raymond Aron e Russell Kirk, grandes nomes do conservadorismo, deixam claro esse espírito de prudência e anti utopia presente nessa posição política. Um mergulho em escritos políticos de filósofos cristãos anteriores ao iluminismo também demonstram a inexistência de um ideal de redenção política, já que para a visão judaico-cristã, o mundo sempre terá problemas, a redenção plena vem apenas de Deus e o paraíso não será erguido por nós. É nesta visão judaico-cristã cética e prudente em relação ao ser humano e o mundo que o conservadorismo mantém suas raízes. O conservadorismo, em suma, é a política do possível.

Ante o exposto, parece bastante claro que nazismo e fascismo não se enquadrariam jamais no quadrante conservador do lado direito. Edmund Burke, pai do conservadorismo moderno faria, certamente, as mesmas criticas que fez à Revolução Francesa em relação a esses movimentos que, aliás, descendem de uma mesma tradição de políticas redentoras surgidas no iluminismo. Winston Churchill, primeiro ministro britânico entre os anos de 1940-1945 e 1951-1955, é a maior prova de que, na prática, o conservadorismo rechaçava o nazismo e o fascismo. Um dos maiores nomes do conservadorismo, Churchill lutou vorazmente contra os dois movimentos e como governante se limitou a fazer a política do possível.

O fato de o nazismo e o fascismo terem flertado com algumas (poucas) posições e discursos geralmente defendidas por conservadores não faz desses movimentos conservadores, já que as principais características que definem o conservadorismo político eram rechaçadas pelas duas ideologias. Não só o discurso e as ações propostas, mas o próprio modus operandi do nazismo e do fascismo eram revolucionários. Eram dois movimentos baseados na rebelião das massas, algo típico da Revolução Francesa e das rebeliões socialistas, atitudes nada conservadoras.

Ainda no lado direito, há também os liberais. Historicamente, esse grupo sempre se definiu por ser contra uma forte intervenção do governo na economia. A economia deveria ser o mais livre quanto possível, a fim de gerar maior competição, um dos fatores responsáveis pelo surgimento de mais empregos, melhores produtos e serviços, avanços tecnológicos e maiores salários. Os liberais também perceberam, com o tempo, que governos antiliberais não só atrasavam o desenvolvimento econômico da sociedade, como se tornavam autoritários. Não demorou para que o liberalismo econômico entendesse que quanto mais poder econômico tinha o Estado, mais poder político ele também o tinha. E isso certamente descambaria em tirania estatal. Aliás, todos os projetos redentores de governo propunham exatamente isso: tirania estatal para salvar o mundo. Uma leitura nos escritos de Adam Smith, Frederic Bastiat, Carl Menger, Eugen Von Bohn Bawerk, Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek, grandes nomes do liberalismo econômico, demonstra como esta corrente sempre defendeu um estado pequeno e uma economia livre.

Então, fica claro que também é impossível incluir o nazismo e o fascismo no quadrante liberal da direita, já que esses regimes eram absolutamente contrários ao livre mercado e um Estado pequeno. Todo o pensamento nazista e fascista está baseado em um altíssimo grau de controle estatal da economia e da sociedade, e na visão de que o capitalismo liberal é o grande mal do mundo. Mises e Hayek, que viveram à época do nazismo e do fascismo, destacaram o antliberalismo desses movimentos e como esse tipo de política econômica altamente interventora sempre gera autoritarismo e despotismo políticos.

O fato de, vez ou outra, o nazismo e o fascismo terem se utilizado de algumas decisões mais liberais não torna esses movimentos liberais, já que no quadro geral a economia não tem liberdade. Governos intervencionistas usam um pouco de pragmatismo econômico sempre que necessário, já que economias planificadas não se sustentam por muito tempo. Uma privatização aqui para reduzir gastos e contar com a melhor organização do setor privado ou uma redução de impostos sobre um setor ali para criar incentivo são atos que podem ser colocados em prática de modo bem controlado, quando for preciso. O próprio Lenin retrocedeu um pouco ao capitalismo após a revolução russa através da NEP (Nova Política Econômica), já que a estatização radical gerou uma crise.

Pequenas concessões à práticas do liberalismo econômico são aceitáveis pelo socialismo quando controláveis. Desde que o poder continue firme nas mãos do estado, não há problema. Daí os novos governos marxistas pós-URSS não mais pregarem a estatização completa da economia e a destruição do empresariado, mas uma sociedade em que o governo "faça justiça social com a ajuda de empresários responsáveis", o que na prática significa um amplo controle sobre a economia de modo indireto. Na prática, em suma, corporativismo, o mesmo modelo adotado pelo fascismo e pelo nazismo. O fato inescapável é que todos os governos de esquerda são, em maior ou menor grau, corporativistas. E no corporativismo, os mais sórdidos ditadores, políticos e empresários saem ganhando. Só quem perde é o povo.

Ora, se nazismo e fascismo não se encaixam em nenhum dos dois quadrantes da direita, devem se encaixar em algum dos dois quadrantes da esquerda. Bom, há o quadrante comunitário (ou autoritário) e o quadrante liberal/libertário. Os libertários de esquerda são aqueles que se dedicam hoje mais ao discurso de defesa de minorias e questões culturais do que aos discursos econômicos. É a nova esquerda, germinada por autores como Lukacs e Gramsci, e concebida por homens como Marcuse, Adorno e Foucault. É a esquerda que toma o lugar dos comunistas de discurso mais ortodoxo e economicista, passando a focar mais em temas como feminismo, aborto, divórcio, revolução sexual, homossexualidade, liberação das drogas, religiões alternativas, etc. A intenção é moldar a cultura da sociedade, forjar uma aparência de defesa das minorias, da democracia e da liberdade, ganhar apoio popular por meio de jovens libertários e ascender ao poder através de um discurso mais ameno. Quando no poder, colocarão em prática o mesmo tipo de planificação da economia.

Obviamente, por ser um fenômeno mais moderno, nazismo e fascismo não se enquadram nesse grupo. Como também não se enquadra o comunismo leninista, trotskista, stalinista, maoísta e castrista. Nenhum desses regimes se preocupou com aparência democrática, guerra cultural e o discurso de defesa de minorias. O discurso era radical. Lênin, por exemplo, entendia que o poder deveria ser tomado pela força, tão logo uma vanguarda revolucionária se formasse e tivesse condições de empurrar a população nessa direção. Nesses regimes, houve perseguição aberta de judeus, homossexuais e etnias religiosas. O tipo de discurso moldado pela nova esquerda ainda não existia. Ele nasceria a partir do fim dos anos 60 e começo dos anos 70, quando a própria esquerda contestaria a eficácia do modus operandi dos regimes comunistas mais velhos. Assim, todos os movimentos de redenção anteriores, incluindo aí o fascismo e o nazismo, não se enquadram na nova esquerda.

Sobra, por fim, o quadrante comunitário/autoritário do lado esquerdo do diagrama. Os movimentos presentes nesse quadrante se caracterizam pelo viés mais coletivista e radical de seu discurso e ação. Não se fala muito em direitos em individuais, mas sempre na luta coletiva contra o sistema capitalista. O foco não são minorias, mas o povo trabalhador no geral. Essa é a massa a ser defendida pelo discurso. Aqui a mudança não vem pela cultura. A cultura só é realmente importante depois que o partido ascende ao poder, pois o regime controlará a vida cultural. Assim o discurso é mais autoritário e despudorado. A mudança vem pela força, pela ruptura radical com a política e a economia atuais, com um governo que se oponha fisicamente aos que não desejam a mudança. Não há verniz democrático para disfarçar o regime autoritário, nem antes do poder, nem durante. O golpe de força não está descartado como forma de se alcançar o governo absoluto.

Nesse quadrante se encontram os comunismos descritos há pouco: leninista, trotskista, stalinista, maoísta e castrista. Uma frase de Engels sintetiza o tipo de discurso e ação presentes nesse grupo: "A democracia seria inteiramente inútil ao proletariado se não fosse imediatamente empregada para obter toda uma série de medidas que ataquem diretamente a propriedade privada e assegurem a existência do proletariado" [2]. Pois é exatamente nesse quadrante que o nazismo e o fascismo melhor se enquadram. O quadrante revolucionário e abertamente autoritário, que enxerga a sociedade apenas de maneira coletiva, e não procura esconder seus objetivos totalitários. O quadrante da economia extremamente planificada, seja de modo direto ou indireto. O quadrante que vende o discurso utópico de uma sociedade ideal. O quadrante da tradição iluminista de ideologias redentoras, da religião política, da salvação pelo Estado. O quadrante antiliberal e anticonservador por excelência. Esse quadrante está na esquerda e não há como negar isso.

Assim, o nazismo e o fascismo se originam a partir do ninho de projetos diferentes das mais diversas esquerdas para redimir a sociedade do caos. Não há, nesses movimentos, nada realmente basilar que venha da direita. Não há o compromisso conservador com os pilares, com a prudência, com a política do possível. Não há o compromisso liberal econômico com um Estado pequeno e uma economia livre. São projetos absolutamente revolucionários e estatistas. Qualquer comparação destes movimentos com ideias de direita é superficial. Quando, por exemplo, Donald Trump ou governos de países como Polônia, Hungria e República Tcheca tomam decisões pela soberania de seus países (tidas como nacionalistas), não o fazem por alguma ideologia de supremacia étnica ou por uma luta contra o capitalismo mundial. Trata-se apenas de defesa contra políticas diretamente prejudiciais às suas nações. E isso é o que se espera de todos os governantes: que zelem por suas nações. Não há nada de fascista ou nazista nisso.

O conhecimento das origens do fascismo e do nazismo, como já dito na introdução desse texto, nos ajuda na missão de evitar o aparecimento de regimes semelhantes. Fica claro, após essa análise, que os responsáveis pela concepção desses movimentos foram ideais utópicos de sociedade, rebeliões das massas, estatismo, intervencionismo exagerado, etc. Pois são contra essas ideias que devemos lutar. Nazismo e fascismo surgiram das ideias da esquerda. São de esquerda. Embora hoje, felizmente, esquerdistas não defendam esses movimentos, defendem regimes autoritários originados das mesmas bases. Por isso a discussão não é inútil. As ideias não surgem num vácuo. Elas possuem lastro. Elas possuem origem. Devemos estar sempre atentos a isso.
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Referências:

1. Publiquei os seguintes textos sobre o tema: 

2. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; tradução de NOGUEIRA, Marcos Aurélio e KONDER, Leandro. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 101.

domingo, 13 de agosto de 2017

O homo spiritualis e as religiões políticas

6 comentários:
Os cientistas chamam a espécie humana de Homo sapiens. Seria mais apropriado nomeá-la como Homo spiritualis ou Homo religionis. O homem é inerentemente religioso. E a história do mundo, na verdade, é a história espiritual do ser humano. Tal fato pode soar estranho para quem tenha recebido uma educação secularista e para os indivíduos que não seguem, nem creem em nenhuma religião. Mas não há erro aqui. A constatação de que a espécie humana é religiosa, isto é, possui inclinação natural à religião não requer aceitação de que alguma religião é verdadeira, tampouco implica que todos os indivíduos sejam religiosos. Estamos falando de uma característica geral, de espécie, o que abarca a maioria dos indivíduos, mas não todos. Ademais, também não é necessário crer na veracidade de alguma religião para concluir o fato óbvio de que toda a história do mundo foi influenciada por pensamentos religiosos.

Essa influência da religião, tanto no sentido psicológico/biológico, quanto no sentido cultural/moral se encontra também em grandes ideias, movimentos e eventos seculares, tais como o iluminismo, a revolução francesa, o positivismo, o darwinismo, os diversos tipos de socialismo, o marxismo, o fascismo, o nazismo, etc. Todos esses movimentos, ideias e eventos possuem um objetivo redentor, sendo, portanto, religiões políticas. Eles surgem em razão da religiosidade intrínseca do homem em união com todo o arcabouço de pensamento religioso proveniente da cultura. Isso quer dizer que tais movimentos são religiosos na mesma medida em que são contrários à religião revelada tradicional (em especial, o cristianismo). São distorções da religião. E como toda a distorção, muitos de seus elementos descendem das tradições religiosas às quais se opõem.

O objetivo desse texto é trazer a lume essa concepção, mostrando o caráter religioso desses movimentos seculares, a impossibilidade de entendê-los plenamente sem levar em conta a influência psicológica e cultural da religião tradicional sobre a sociedade e, por fim, as razões que geraram esses movimentos distorcidos.

Os três sensos do ser humano

Há na espécie humana como um todo pelo menos três sensos inerentes que resistem à passagem do tempo, sobrevivendo em cada geração. O primeiro é o senso objetivo de valor e moral. Ele se constitui na capacidade e na necessidade de dar valores positivos e negativos a determinadas ideias, comportamentos e seres de forma objetiva. Explico melhor. Um homem olha para as pessoas a sua volta e reconhece que a vida delas importa. Ele está dando um valor positivo à vida das pessoas. Dessa capacidade de valorar as pessoas, surge a capacidade de julgar certos comportamentos e ideias como justos ou injustos, bons ou maus, certos ou errados. Se esse homem vê uma das pessoas a sua volta sendo morta, sabe que algo de valor foi arrancado ali. Dependendo da circunstância ele pode concluir que o homicídio foi covarde, injustificado, que a vida de uma pessoa (o que é importante) foi ceifada sem qualquer razão que valesse mais que aquela vida. O homem conclui que o homicídio foi errado, mau, injusto.

De modo semelhante, esse homem pode ver uma vida sendo salva no meio da multidão e concluir que isso foi certo, bom e justo, pois uma vida humana importa, tem grande valor. Estou usando apenas alguns de centenas ou milhares de exemplos. Em suma, o senso de valor e moral nos permite saber que atitudes como matar por motivo torpe, roubar, torturar, estuprar e explorar são atitudes ruins, ao passo que salvar uma vida, dar água ao sedento, ajudar o fraco e julgar com equidade são coisas boas. Esse senso nos permite saber que o amor é bom e deve ser cultivado, que o ódio é ruim e deve ser evitado. Ensina que existem direitos e deveres. Capacita-nos a fazer juízos de valor e juízos morais o tempo todo. Talvez se possa classificar tal senso como dois distintos que se relacionam intimamente. Mas tratarei nesse texto como um senso só.

O segundo senso inerente ao ser humano é o de sentido da vida. Ele se constitui na necessidade que a espécie humana tem de se engajar em alguma atividade que vá além da mera sobrevivência. Diferentemente dos animais e outros seres irracionais, o homem não se contenta com uma existência limitada à satisfação mecânica de necessidades fisiológicas. Acordar, buscar alimento, se reproduzir e dormir são fatores que, sozinhos, não satisfazem o ser humano. A espécie humana compartilha de um forte desejo por um objetivo de vida, que confira a cada indivíduo sensações de importância, pertencimento a um grupo e/ou projeto interessante, ocupação, alegria, prazer e consciência limpa; que ofereça algum tipo de desafio, conjunto de metas, roteiro, enredo, fases.

A necessidade humana de sentido da vida engloba tanto o lado subjetivo e autocentrado desse senso, no qual cada indivíduo busca um “algo mais” que faça bem a si próprio, quanto o lado objetivo, altruísta e comunitário, no qual o indivíduo anseia por satisfazer os desejos do próximo. Em um ser humano moral e psicologicamente saudável, os dois lados desse senso, o subjetivo e o objetivo, caminham juntos. Assim, esse ser humano saudável procura um sentido para a sua vida que, de alguma forma, colabore com um sentido da vida mais geral, que abarca os interesses de todo. Aqui fala alto a visão de si mesmo como parte de um todo maior, que é a humanidade (e que é formada por grupos menores, como a família e as comunidades locais).

Finalmente, o terceiro senso é o de redenção da humanidade. Ele se caracteriza como uma forte convicção de que existe algo errado no mundo a nível moral e que isso deve ser consertado. Em outras palavras, o mundo precisa de uma redenção para que passe a funcionar do modo correto. Geralmente, essa certeza se associa a alguma explicação sobre os motivos que levaram o mundo a situação caótica em que se encontra. Então, surge aí a pressuposição de que em algum momento do passado a sociedade não possuía os problemas morais e organizacionais que passou a ter. O senso de redenção leva diretamente à ideia de que o mundo será redimido de alguma forma, seja por ação direta do ser humano, por algum agente externo ou em conjunto.

Os três sensos elencados aqui estão intimamente relacionados. Sem o senso moral, não há como ter o senso completo de sentido da vida, nem o de redenção. A redenção só tem lógica se o homem puder olhar para determinada situação e dizer que ela é realmente justa ou injusta. E somente a possibilidade de fazer juízos de valor e morais objetivos pode criar um sentido real para a vida humana como um todo, tornar objetivamente bom o ímpeto de satisfazer o próximo e criar a obrigação moral de ajudar.

Sem a necessidade de sentido da vida, por sua vez, tornamo-nos meros animais, o que anula qualquer ímpeto de luta ou espera por redenção. E isso sufoca a moral até mata-la, pois se não há um sentido objetivo para a vida, a vida humana não tem um objetivo, nem um valor, de onde se deduz que tudo é permitido e não há regras reais. Tudo é questão de convenção e ilusão.

Já sem o senso de redenção, o sentido da vida coletiva desaparece, porque não haverá esforço ou aspiração pela resolução dos problemas sociais. A moral, por conseguinte, tenderá a sumir também, seguindo o desprezo pela redenção e o real sentido coletivo da vida.

A religião tradicional

Tendo visto os três sensos inerentes da humanidade, nos voltamos para uma análise da religião tradicional. Por religião tradicional, nesse texto, entendemos todo o conjunto de tradições religiosas diversas que possuem a crença no conceito filosófico de Deus. Aqui é importante enfatizar que Deus, na concepção filosófica, se distingue das divindades menores de religiões politeístas e panteístas. As divindades estão inseridas no contexto espaço-temporal, sendo elas criaturas também, embora mais poderosas que o homem e imortais. Na maior parte das tradições religiosas tribais ao redor do mundo, no entanto, conservou-se a ideia de um Deus anterior e superior a todas as divindades, o qual seria o criador. A tendência, ao longo do tempo, foi o ofuscamento desse Deus criador original e a ênfase de divindades menores. Uma das razões é o fato de que o Deus Criador não pode ser representado, enquanto que deuses menores são passíveis de representação. Na falta de uma figura palpável para adorar, as tribos foram levadas a venerar os astros, os antepassados e divindades representadas como animais ou homens.

O conceito de Deus criador, no entanto, atravessa os séculos e é resgatado pela religião hebraica/judaica, onde o monoteísmo se impõe pela lógica. Diferentemente das outras divindades, o Deus dos hebreus é superior a tudo o que há no universo, o que significa que Ele transcende tempo, espaço e matéria. É exatamente o mesmo conceito presente em religiões politeístas, com a diferença de que no hebraísmo dá-se um passo a mais na lógica: o conceito filosófico de Deus impõe a existência de um só Deus. Assim, todas as divindades ou não existem ou são meras criaturas, não devendo ser adoradas.

As conclusões do hebraísmo/judaísmo, por serem uma questão de lógica, são alcançadas também por filósofos gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles, a partir de observação e dedução. Deus é o primeiro motor do universo, a primeira causa, a fonte da vida e da ordem, a raiz do bem e do belo, e infinitamente superior a tudo. Os teólogos cristãos trabalharão sobre essas bases, entendendo Deus como a fonte primária de tudo. Assim, nossa moral, nossa razão e nossa vida se originam em Deus, que possui tais atributos como características intrínsecas. Deus é amor, é moral, é razão e é vida.

É a esse conceito filosófico de Deus que nos referimos como pilar do que entendemos, nesse texto, como religião tradicional. Não falamos, por ora, de uma religião específica, mas de todas as tradições que possuem esse elemento em comum.

Ora, a religião tradicional desempenha a função de ponte entre Deus e os homens. Ao admitir a noção lógica de que há um ente pessoal que transcendendo tempo, espaço e matéria, do qual advém a realidade moral, os valores objetivos, a razão e a vida, ela nos leva à conclusão de que os nossos três sensos inerentes só são satisfeitos nele. Não se trata aqui apenas de uma conclusão lógica, mas de uma necessidade psicológica inata ao ser humano. Se de fato Deus existe, só encontra satisfação plena em Deus, que é a fonte da moral, do sentido da vida e da redenção. Uma vez que a religião tradicional cumpre o papel de ponte para nos levar a Deus, isso significa que ela é, ao mesmo tempo, ponte para nos levar à satisfação plena de nossos três sensos. É por essa razão que a espécie humana é inerentemente religiosa.

Não surpreende que no desenrolar da história das religiões vê-se, em cada uma delas, justamente tais elementos: uma noção de valores e moralidade (ainda que, muitas vezes, distorcida), uma noção de sentido para a vida e uma noção de redenção. Também se vê outros elementos relacionados como uma narrativa para a queda do ser humano e um ser maligno que traz o pecado para o mundo. A história das religiões evidencia uma única tradição cultural original da qual descende todas as outras, bem como uma estrutura psicológica comum à espécie humana, que serve de base para a manutenção dos traços dessa cultura religiosa original. Alguns antropólogos e teólogos trabalham aqui com os conceitos de tradição adâmica e monoteísmo primitivo. Ambos versam sobre a origem comum das religiões em um tronco monoteísta com as noções de criação e queda do ser humano. As evidências arqueológicas, linguísticas, históricas e psicológicas de fato apontam para a veracidade desses conceitos.

O ser humano, portanto, é religioso pelo fator psicológico e pelo fator cultural, dois elementos que fortalecem e mantém um ao outro numa dialética constante. A cultura religiosa sustenta firme estrutura psicológica religiosa e esta, por sua vez, sustenta firme a cultura religiosa. Nós podemos afirmar, por conseguinte, que a religião tradicional é configurada de modo sócio psicológico.

A fuga de Deus e a distorção da religião tradicional

Fizemos uma avaliação da estrutura religiosa do ser humano. Cabe agora analisar o que ocorre quando o ser humano procura fugir de Deus e da religião tradicional.

O homem tem sede de Deus, pois só reconhecendo a sua existência como fonte de tudo e mantendo um relacionamento com Ele, pode saciar plenamente os seus três sensos. No entanto, há aqui um paradoxo. O mesmo homem que tem sede de Deus, tem propensão natural à imperfeição. Do ponto de vista evolutivo (para quem nisso crê) somos apenas animais, o que significa que temos instintos vis. O fato de possuirmos a faculdade da razão não muda isso, mas agrava. A razão nos faz perceber maior facilidade e certos lucros pessoais em agir mal, ao passo que também faz notar a dificuldade e os prejuízos pessoais de agir bem. A razão nos faz muito mais perigosos e potencialmente piores que os animais irracionais.

Do ponto de vista religioso, temos propensão à imperfeição porque o mundo perfeito criado por Deus foi corrompido por nossas escolhas. E a desarmonia resultante dessas escolhas maculou nossa natureza. Já nascemos inclinados ao egoísmo, à ganância, à raiva, à mentira, à promiscuidade, à desonestidade. Somos pecadores. É mais fácil errar do que acertar.

Nesse sentido, é a visão judaico-cristã que irá incrementar na sociedade uma noção mais apurada e refinada de busca pela moralidade e negação dos desejos vis. É o judaísmo e, principalmente, o cristianismo que moldará em grande parte do mundo a ideia de vencer a si mesmo, de exercitar virtudes e superar vícios. O cristianismo ensinará que ao homem cabe o autocontrole e a formação de um novo eu, o que o cristão fará não sozinho, mas com o auxílio ininterrupto do Espírito Santo. Assim, o Homo spiritualis, imbuído de cultura judaico-cristã, se prenderá aos preceitos da religião tradicional, entendendo-se dependente de Deus para a reconstrução de si.

Uma vez, no entanto, que há livre arbítrio, muitos indivíduos irão preferir uma vida de vícios ou ainda, não desejarão saciar sua sede através de um relacionamento com Deus. Relacionamentos não são fáceis, requerem comprometimento, entrega, sacrifício, amor, aspectos que nem todos estão dispostos a doar. Com Deus não é diferente. Eis o x da questão. O homem tem sede de Deus como tem sede de água. Mas muitos preferem matar a sede com refrigerantes. O ser humano que nega a religião tradicional e a Deus, continuará com seus três sensos, necessitando saciá-los de alguma forma. A sede permanece. Na falta de Deus, onde o homem achará sentido? Na falta de um ser pessoal transcendente, do qual a razão, a moral, o sentido da vida é a redenção advém, a que religião o Homo religionis irá se agarrar? Se a religião tradicional faz parte de seu ser, o que fará sem ela? O que colocará em seu lugar?

É aqui que surgem as tentativas de criar um novo sistema completo de sentido, algo que substitua a religião tradicional e a necessidade por Deus. Esses novos sistemas completos são também religiões. Porém, não mais religiões de matriz tradicional. Deus ou é tirado de cena, ou resumido ao papel irrelevante. O homem agora é independente, soberano, senhor de seu próprio destino. O sistema completo terá sua própria moral, seu próprio sentido coletivo, seu próprio plano de redenção, no qual a humanidade, através de ação política, salva a si mesma. Esta é a religião política.

A religião política pode ser entendida como uma distorção da religião tradicional, ou ainda, como uma tentativa de plágio. Ela surge não apenas da necessidade psicológica do homem por Deus, mas da cultura religiosa que retroalimenta as relações do homem com o metafísico. Assim, por mais que a religião política procure se opor e até destruir a religião tradicional, ela o fará justamente com as bases da religião tradicional. Esta é a razão pela qual o antirreligioso geralmente não passa de um religioso político.

A trajetória da religião política

Historicamente, os primeiros passos dados na direção da religião política ocorreram no período do iluminismo. O entusiasmo com o rápido surgimento de novas tecnologias e estudos voltados cada vez mais para o enaltecimento das capacidades humanas fizeram surgir ideias contrárias aos conceitos da religião tradicional e favoráveis a uma radical reformulação de tudo. Muitos, à título de se livrarem de distorções no âmbito da religião tradicional, jogaram a água suja fora com o bebê junto. E na falta do bebê, tomaram para si um simulacro de bebê.

Há dois exemplos icônicos de ideias que irrigaram a religião política nessa época. Uma foi o deísmo. Sustentando a concepção de que Deus existe e gerou o universo, porém não intervém na história do mundo, o deísmo se tornou a crença de muitos pensadores do período iluminista, como Edward Hebert, John Locke, Voltaire e Thomas Paine. Em maior ou menor grau, a ideia influenciou também pensadores cristãos, pavimentando o caminho para um cristianismo liberal, cada vez mais relativista e desfigurado.

Para os deístas, por mais que as religiões tradicionais tenham o seu valor como fonte de ética, nenhuma delas é verdadeira. Deus é o criador, a primeira causa, mas não se revela, não se comunica com o homem, não intervém e, portanto, não tem qualquer relevância na história do mundo e em nossas vidas individuais. Isso significa que a resolução de todos os problemas do mundo cabe unicamente à humanidade. Uma vez que os deístas do iluminismo se consideravam a geração iluminada de uma humanidade em constante evolução racional, era certo, para eles, que esses problemas seriam mesmo resolvidos. A humanidade pode. “We can do it!”.

Já para os cristãos mais liberais dessa época, o cristianismo não era abandonado, mas esvaziado. Milagres narrados na Bíblia eram tidos como símbolos, a Escritura deixava de ser totalmente inspirada e Jesus se tornava apenas um grande mestre da moral. Nos dois grupos, o dos cristãos liberais e dos deístas, havia um elemento em comum: Deus perdia o protagonismo e o homem era divinizado. O iluminismo, por mais que tenha popularizado algumas ideias boas, pode ser comparado a um adolescente: com excesso de confiança em si mesmo, afobado, impulsivo, desprezando a voz da experiência, não considerando a existência de certos limites e pilares a serem conservados.

Ao propor que o homem é praticamente o seu próprio deus, agiu como aquele jovem universitário, recém saído do ensino médio, que pretende revolucionar o mundo, sem antes conhecer melhor a si mesmo e revolucionar o seu próprio caráter; aquele jovem que cheio de ideias para resolver os problemas da humanidade, mas incapaz de lavar a louça em casa, arrumar o quarto, ser fiel em seus relacionamentos e permanecer sóbrio aos fins de semana. O iluminismo, tal como esse jovem, conferiu ao ser humano uma capacidade que ele não possui. E isso, como veremos mais adiante, nunca dá certo.

Um segundo exemplo icônico de ideia que irrigou a religião política foi a suposição de que o homem é essencialmente bom em sua natureza. O maior expoente do conceito foi o filósofo Jean-Jacques Rousseau. Em um ensaio denominado “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, o autor defende que o estado natural do ser humano não é a corrupção. A degradação da humanidade seria causada por alguns elementos surgidos da associação entre os homens, como as distinções entre o mais belo, o mais forte, o mais inteligente, e o advento das propriedades privadas. As distinções feitas entre os homens geraram os sentimentos de inveja, vaidade, desprezo, vergonha e raiva. E a passagem de propriedade de geração em geração, gerou riquezas díspares, relações de escravidão, violência e guerra. Em suma, o homem não era, para Rousseau, inclinado naturalmente à imperfeição, mas tornava-se imperfeito porque a sociedade estava estruturada de modo imperfeito.

As implicações desse conceito são muito amplas. Se o ser humano é naturalmente bom, racional e perfectível, e o problema do mundo está numa má configuração da sociedade apenas, basta a própria humanidade reconfigurar a sociedade e o mundo se transformará em um paraíso. É partindo de pressupostos semelhantes que diversos autores otimistas do iluminismo, sobretudo o francês, escreverão ensaios, artigos e livros com suas ideias de sociedade perfeita e os modos de alcançá-la. O homem iluminista, finalmente, tomou o lugar de Deus e destituiu a religião tradicional de seu posto como condutor para a moral, o sentido da vida e a redenção do mundo. A humanidade chegara ao seu ápice e não precisava mais de Deus, mas apenas de um bom projeto político, homens engajados e força de vontade. Estavam aqui criados os pilares da religião política.

A irracionalidade e as consequências desastrosas da religião política

O iluminismo vendeu à humanidade a ideia de que podia redimir o mundo sem Deus, através de algum plano político. Mas que plano? Como alcançá-lo? Cada pensador tem seu próprio conceito. E que ganhe o que conseguir emplacar o projeto mais bruto. Aqui começam os problemas. O primeiro eco prático da religião política ocorre na Revolução Francesa. Uma revolução regada aos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e um sonoro “não” à religião tradicional. Aos olhos dos iluministas, a primeira oportunidade de provar ao mundo suas ideias. “We can do it!”. O primeiro paraíso na terra está para sair do forno. Grande expectativa. O resultado? Err, bem... Um período do terror entre 1793 e 1794 instaurado pelos radicais jacobinos, que levou mais de 30 mil pessoas à morte por repressão; uma forte instabilidade política causada pelas lutas revolucionárias pelo poder; degradação moral, perseguição religiosa, perseguição política e, por fim, a assunção de um novo ditador, Napoleão Bonaparte, em 1799. Dez anos de violência e sangue que não levaram à nada.

Alguns pensadores da época, como Edmund Burke, perceberam os erros da Revolução Francesa desde seu início. O problema não estava em querer mudanças e lutar por elas, mas sim na forma como isso era feito e os fins que eram visados. A ruptura total e radical com tudo o que se via pela frente não levaria à construção de um mundo bom, mas à criação de instabilidade política e destruição de bases importantes da sociedade que levaram anos para serem erguidas e até mesmo pilares eternos. Os fins utópicos de uma sociedade perfeita só poderiam gerar frustração para os bem intencionados e oportunidades para os de mau caráter. A destruição indiscriminada de toda a estrutura da sociedade imbuiria o povo de desprezo pela prudência, pela sabedoria dos mais velhos, pelas lições da experiência e da história; formaria um povo de um espírito eternamente revolucionário, sem raízes em nada e, portanto, incapaz de reformar. Burke lembra que é mais fácil destruir do que construir e que, portanto, mudanças devem ser muito bem pensadas, no objetivo e no modo como serão feitas. A Revolução, como um adolescente inconsequente, não quis observar estas regras.

O espírito revolucionário permanece vivo após a Revolução Francesa e irá contaminar a muitos outros autores, dentre os quais se destacam Karl Marx e Friedrich Engels, que formularam a doutrina comunista ou marxista. Os dois autores dão alguns passos ainda mais ousados na consolidação da religião política. Deus agora é totalmente retirado de cena. Segundo eles, Deus não existe e a religião tradicional não passa de um ópio para o povo. Agora, o homem não reconhece mais a Deus nem mesmo como criador e fonte da moral e da razão. A divinização de nossa espécie está completa. Somos deuses. 

Abraçando os ditames da religião política, a síntese da doutrina marxista propõe que o grande problema do mundo é a luta de classes. Há, em toda a história, uma luta interminável entre uma classe dominante e uma classe oprimida. Essa luta chega ao seu ápice no capitalismo. De um lado a classe proletária, oprimida, explorada, miserável. De outro lado, a classe burguesa, rica, dona dos meios de produção, exploradora. É desse cenário que surge, para os autores, a ganância, a violência, o desespero, as guerras, a fome, a destruição. E o que fazer para mudar isso? Atacar a base dessa desigualdade, a fonte dessa luta: a propriedade privada. Esse é o grande plano político redentor de Marx e Engels. É o que irá trazer a salvação do mundo.

Note que todos os elementos da religião tradicional estão no marxismo, como também estavam na Revolução Francesa. Há uma noção de moral objetiva: Marx e Engels olham para a exploração do proletariado e julgam que isso é mau, errado, injusto. Não é, para eles, uma opinião, mas um fato. É um juízo de valor e moral. Há uma noção de sentido individual e coletivo da vida: Marx e Engels desejam (ou, ao menos, vendem a ideia de que desejam) fazer algo por essas pessoas. É o que irá dar sentido às suas vidas e às vidas de outras pessoas. Há uma noção de redenção: a situação caótica do mundo não é normal e precisa ser mudada. Como se não bastasse, é possível ver no marxismo uma história de queda original do homem, um inimigo da raça humana a ser destruído, um Apocalipse e um paraíso final para os justos. Todos os elementos da religião tradicional presentes na cultura (sobretudo na visão judaico-cristã, mas também em quase todas as religiões) em nossos três sensos psicológicos inatos.

Não obstante, ao retirar Deus da equação, o marxismo tornou-se completamente falto de sentido lógico. Para começar, a existência de uma moral objetiva só é possível se ela estiver baseada em algo que transcende tempo, espaço, cultura, hábitos, gostos, instintos biológicos, etc. Se ela está baseada em qualquer desses elementos, não passa de algo aleatório, circunstancial e subjetivo. Para que uma ação seja considerada moralmente errada ou certa, justa ou injusta, boa ou má, independente de tempo, lugar ou cultura, a moral precisa estar além desses fatores, além do universo, fincada em algo imutável e acima de tudo. Uma vez que a moral é um atributo pessoal, esse algo só pode ser um ser pessoal. Assim, qualquer que sustente a existência de uma moral objetiva, está obrigado logicamente a aceitar que há um ser pessoal transcendente que é fonte da moral, o qual tradicionalmente chamamos de Deus. Esse conceito é explicado com mais detalhes em dois artigos que produzi a respeito do argumento moral para a existência de Deus (aqui e aqui), os quais fazem parte de uma série.

Ora, se a moral objetiva só pode existir no caso de Deus existir, anular Deus da história é anular a própria existência de moral objetiva. Sem essa fonte pessoal transcendente, a moral não passa de uma ilusão. Não há obrigação, direitos ou deveres reais. Não há uma base para dizer que algo é bom ou mau, de fato. Há simplesmente algumas regras de convivência que inventamos como meio de autoproteção. Invenção. É isso que a moral se torna em um mundo sem Deus.

Aqui nos perguntamos: de onde Marx e Engels tiraram a ideia de que a exploração de uma classe sobre a outra é algo ruim? De qual base transcendente essa ideia adveio? Se ela não veio de uma base transcendente, ela não é uma verdade absoluta e imutável. Se proveio de algo dentro do universo, como a época, o lugar, a cultura ou qualquer outra coisa, então é relativo e mutável. Logo, não é moral objetiva, mas subjetiva. E se é subjetiva, não é moral, mas apenas opinião.

Em um mundo sem Deus não há mais como valorar as ações ou pensamentos. Não há atos bons, ruins, justos, injustos, certos, errados. Há apenas atos. Atos sem valor. O mundo sem Deus não é imoral, mas amoral. Percebe qual é o primeiro problema do marxismo? Ele aponta uma injustiça em um mundo onde o conceito de injustiça já não faz o menor sentido, pois Deus não existe e nada tem valor objetivo.

Isso nos leva ao segundo problema do marxismo: se não há como valorar nada, também a vida humana e o que dela decorre não tem valor. Sem uma escala real de valores, não há como falar em sentido coletivo da vida. Afinal, não há mais como se dizer que a vida humana é importante e que devemos lutar por liberdade, igualdade, preservação do meio ambiente, manutenção da espécie, combate às injustiças, amor ao próximo. Sem uma escala de valores real restam apenas as perguntas: por que deveríamos? Para quê? Quem disse que devemos? Qual a base disso? A própria palavra “dever”  não descreve mais nada real. Ninguém deve nada.

O mundo sem escala real de valores é um mundo sem Deus, a real fonte de valores. E sem Deus, a existência humana é apenas um acidente cósmico sem propósito. Ninguém nos projetou. Apenas surgimos. Não há um sentido para estarmos aqui, não há o que confira à nossa vida ou ao que quer que façamos uma importância objetiva. Não existe um norte que nos diga para onde devemos ir, simplesmente porque não faz diferença, porque não fomos projetados por ninguém superior, porque não há regras nem valores reais sobre todos nós, porque um dia todos nós deixaremos de existir.

Sem Deus e, consequentemente, sem uma escala de valores, o que resta são tentativas pessoais de dar algum sentido à própria vida. Mas tentativas pessoais são apenas isso: tentativas pessoais, gostos, opiniões. Se Marx e Engels se baseavam apenas em gosto quando diziam que a exploração era errada, então não se tratava de verdade absoluta, mas apenas do desejo pessoal deles, o qual era uma ilusão.

Aqui se chega, por fim, ao terceiro problema do marxismo: sem moral, escala de valores e sentido coletivo da vida, também não há sentido lógico na redenção. O conceito de redenção só pode existir se realmente existir bem e mal, e um propósito superior para a vida humana. Sem esses fatores não há do que redimir o mundo. O desejo de mudar o mundo e o sentimento de que isso é uma obrigação só são reais se Deus também for uma realidade. Do contrário, o que temos são apenas invenções humanas; um ópio para esquecer que a vida nada é. Eis uma grande ironia: Marx e Engels chamavam a religião tradicional de ópio do povo. Mas se Deus existe, a religião tradicional é a verdade. Se, no entanto, Deus não existe, a dupla estava absolutamente dopada de ópio. Ou seja, o próprio marxismo, em sua estrutura, é um ópio, uma ilusão.

Ainda que o marxismo revisse seus conceitos, sustentando que Deus existe, para poder contar com a moral, a escala de valores e o sentido da vida, não teria sentido lógico. Isso porque a redenção só pode ser levada a cabo por Deus, que é perfeito. O homem, por sua imperfeição, não tem aptidão para mudar o mundo. Este foi o erro em que caíram os revolucionários franceses. E foi o erro em que caíram também todos os revolucionários comunistas. Mais uma vez: expectativas. O mundo será mudado. “We can do it!”. E o resultado? Os diversos regimes comunistas/socialistas que se instauraram pelo mundo no século XX geraram ditaduras, perseguições políticas, perseguições religiosas, guerras civis e fomes extremas.

O marxismo falhou em se tornar a salvação da humanidade. E falhou em todas as áreas que poderia. A começar por sua visão antropológica otimista. Mesmo que o ser humano fosse bom por natureza, como sustentava Rousseau, ele está corrompido pela corrupção da sociedade. Corrompido culturalmente. De que maneira homens corrompidos poderão descorromper a sociedade? De que maneira homens imperfeitos em uma sociedade corruptora não se tornarão demônios ao receberem nas mãos todo o poder? Pois é isso o que o marxismo propõe: todo o poder nas mãos do Estado, o qual é dirigido por homens socialmente corrompidos. Isso se a inclinação ao mal não está na natureza humana, o que torna tudo ainda mais difícil. De que maneira o homem pode obrigar o mundo todo de seguir suas ideias de salvação do mundo senão por meio da força? É o que propõe o marxismo. É o que propôs a Revolução Francesa. A redenção não veio. A redenção não pode vir pela força de homens maus em uma ditadura sanguinária.

O marxismo falhou também em ser a redenção do mundo na área econômica. Ludwig von Mises, economista austríaco, já previa, em um artigo publicado em 1920, que os sistemas socialistas são impossíveis de funcionar economicamente. Sua análise contava com “profecias” sobre escassez de alimentos e desordem na produção. Década após década, elas foram se cumprindo em cada economia planificada. O sucesso da teoria de Marx e Engels se mede apenas pela riqueza e o poder dos burocratas e ditadores. Para a população o saldo foi amargo. Miséria, repressão e cerca de 100 milhões de mortos só no século XX. Os regimes socialistas continuam matando no século XXI, na Coreia do Norte, em Cuba e na Venezuela.

Os religiosos políticos poderiam ter desistido de suas premissas ilógicas e reconhecido que estavam errados. Mas cada qual escolheu permanecer com seu projeto salvador. Na Itália, Benito Mussolini, que passou toda a juventude no marxismo, percebeu que ideias como religião, pátria e raça poderiam ser úteis para unir o povo em prol de um ideal de nova sociedade. Criou o fascismo, que via no poder absoluto e perpétuo do Estado a fonte moral, o sentido coletivo e a redenção da sociedade italiana. Uma ideia absurda, um tirano, a habitual sede de poder do ser humano e mais resultados negativos: mortes, repressão, perseguição.

Adolf Hitler também fez sua tentativa. Em seu livro “Mein Kampf”, emplaca a ideia de que o grande problema da sociedade eram os judeus, que espalhados por toda a Europa, pretendiam dominar o mundo. Aqui estava eleito o inimigo. Uma raça degenerada, que enriquecia às custas dos alemães e de outros povos europeus, e que saíam lucrando tanto do lado burguês, quanto do lado comunista. Para Hitler, o marxismo não passava de um engodo criado por judeus para enganar proletários. Não se tratava de um socialismo de fato, mas de uma doutrina judaica que pretendia destruir fronteiras e dar poder ao que Hitler chamava de “Capitalismo Internacional Judaico”. Apenas o nacional socialismo poderia salvar a Alemanha e o mundo desta desgraça. E era justamente a raça ariana de sangue alemão que estava mais apta para essa missão.

Forte intervenção do governo, economia planificada, totalitarismo, perseguição de um grande inimigo da revolução, repressões. O nazismo de Hitler seguiu o mesmo script da Revolução Francesa, dos socialismos marxistas e do fascismo de Mussolini. Milhões de pessoas foram mortas. Uma guerra mundial foi gerada. E nada do mundo perfeito ser construído.

O alto clero da religião política e ópio dos intelectuais

Esses movimentos desastrosos poderiam servir de exemplo para o homem abandonar de vez a religião política. Não deu certo para o povo. Só dá certo para os ditadores, para os que têm sede de riqueza e poder. O sangue derramado de milhões de vítimas deixa isso mais do que claro. Entretanto, pessoas em locais estratégicos da sociedade continuam alimentando as bases da religião política. Diversos jornalistas, sociólogos, antropólogos, biólogos, psicólogos e professores universitários passam suas vidas panfletando ideias como a de que o homem é um ser naturalmente bom e o problema do mundo não está na natureza humana; que a humanidade é perfectível e, portanto, capaz de construir um paraíso na terra através de um projeto político; que Deus não existe, ou é mero capacho da espécie humana, dependente de nossos projetos “infalíveis” de mundo paradisíaco, quando não um figurante irrelevante no grande palco da história.

Ideias originalmente bem intencionadas, surgidas de sentimentos humanitários sinceros, se tornam ferramentas de alienação de jovens universitários sonhadores, adolescentes irresponsáveis e, posteriormente, todo o restante do povo. As mesmas ideias são usadas por políticos e ideólogos para alcançar poder, fama status e riqueza. Ambientalismo, feminismo, movimentos negros, organizações pró-direitos humanos, grupos em favor de minorias oprimidas, tudo, absolutamente tudo, pode ser usado pelos burocratas do poder e seus ideólogos para legitimar o aumento do poder do Estado sobre a sociedade, o que garante muita influência, autoridade e riqueza para os que controlam o Estado ou seus parceiros de negócios e amigos próximos. E tudo, absolutamente tudo, pode ser vendido como um novo projeto redentor, infalível, repleto de sentido e moral, mas que no fim, sabemos, não dará em nada. A religião política tem um alto clero corrupto e uma horda de fieis enganados que sustentam seus dogmas ilógicos.

Nessa terrível contrafação da religião tradicional, um dos elementos mais importantes para a sua manutenção é a mentira. A religião política mente incessantemente. Ela se coloca como a mãe das virtudes, em oposição à religião tradicional, principalmente o cristianismo. Há uma clara predileção pela religião política em atacar o cristianismo, já que é sobre as bases da religião cristã que todo o ocidente foi erguido e todo o mundo foi influenciado. A cultura judaico-cristã causa fúria nos religiosos políticos e, por isso, há uma cruzada contra tudo o que é cristão. Uma cruzada de mentiras. 

Pela boca de cientistas mal intencionados (ou mal informados), a religião política dirá que o cristianismo é contrário à ciência. Mentira! Os primeiros grandes cientistas do ocidente eram, em sua maioria, cristãos devotos, que entendiam o conhecimento como benção de Deus e evidência de sua sabedoria. A ciência só floresce no mundo por causa do pressuposto cristão de que um Deus racional projetou um universo também racional, regido por leis fixas. Este pressuposto está na Bíblia. Como também está na Bíblia uma série de passagens incentivando cada fiel a manter uma postura de busca pela sabedoria e questionamento para conhecer a verdade. Não fossem os pressupostos cristãos, ainda estaríamos adorando o sol, a lua, comendo tribos inimigas e matando casuais Sócrates que surgissem com uma filosofia mais racional. É o que o mundo pagão fazia.

Por feministas modernas, a religião política dirá que o cristianismo é machista e oprime as mulheres. Ela não mencionará que a Bíblia está repleta de textos que ordenam o respeito e o amor às mulheres, ou que grande parte das primeiras feministas eram cristãs devotas, ou que muitos homens cristãos lutaram ao lado das mulheres pelos direitos e dignidade. O feminismo moderno simplesmente apaga a participação cristã da história e deixa de representar mulheres religiosas e conservadoras, preferindo seguir uma agenda política.

Por pretensos defensores dos pobres e oprimidos, a religião política dirá que a religião cristã nada faz pelos desfavorecidos. Não dirá, é claro, que hospitais e escolas públicas existem por causa do cristianismo. Não mencionará que a Bíblia conta com dezenas de textos repetindo como ordem a assistência aos órfãos, viúvas e estrangeiros (as classes mais necessitadas das épocas bíblicas). Não lembrará o quanto as milhares de igrejas e os milhões de cristãos espalhados pelo mundo ajudaram, ao longo dos séculos, e ajudam ainda hoje pessoas em dificuldade com cestas básicas, remédios, tratamentos médicos, apoio psicológico, construção de abrigos, etc. As grandes instituições cristãs de apoio e o grandes nomes cristãos da ajuda humanitária serão propositalmente esquecidos.

A religião política não lembrará que foi pela luta de milhares de cristãos verdadeiros que a escravidão, tão comum na história do mundo, fosse gradualmente amenizada até ser extinta no mundo ocidental. Nem reconhecerá que, quando a prática ressurgiu, por uma influencia de tribos africanas que ainda a praticavam e negociavam seus escravos para europeus, mais uma vez milhares de cristãos verdadeiros lutaram contra ela, baseados na noção bíblica de que todos os homens são iguais em dignidade, pois foram criados à imagem e semelhança de Deus, o mesmo que se sacrificou pelo mundo mediante Jesus, o Cristo.

Por mais que a religião tradicional tenha sofrido com distorções internas ao longo dos séculos, incluindo aí o cristianismo, o fato é que o problema nunca esteve na crença em Deus ou na sustentação da Bíblia Sagrada. O surgimento de religiões violentas, imorais, discriminadoras e ilógicas são distorções da religião original, da tradição adâmica da qual todas as outras descendem. Essas distorções se distanciam da vontade de Deus. Da mesma forma, as distorções no interior do cristianismo (que se vê como herdeira direta da religião original), levam muitos cristãos a agirem contrariamente ao próprio ensino bíblico, destoando da vontade santa de Deus.

Um cristão que espanque sua esposa ou que, podendo ajudar, não estende a mão ao necessitado, não está agindo em conformidade com o cristianismo puro, com o padrão bíblico, com o desejo de Deus. E quanto mais um cristão se afasta do cristianismo, obviamente menos pode ser chamado de cristão. O problema, portanto, não está no cristianismo, mas em suas distorções. Ao homem que quer ser um bom cidadão, filho, esposo, pai, vizinho, amigo, enfim, humano, basta ser um bom cristão. O mesmo serve para mulheres. O cristianismo, quando seguido puramente, não gera homens dispostos a matar, roubar e fazer sofrer, mas a se doar a Deus e ao próximo por amor. E é por meio desse amor (para os cristãos, gerado por Deus em nós através de nossa aceitação dEle), que podemos nos descorromper gradualmente e impactar positivamente o mundo.

O cristianismo verdadeiro mantém os pés no chão. Reconhece a miséria interior do ser humano. Somos inclinados ao mal, imperfeitos moral e administrativamente. É mais fácil errar do que acertar. É mais fácil distorcer do que seguir a verdade. O cristianismo verdadeiro põe o homem em seu lugar. A mensagem básica da tradição judaico-cristã ao homem é: não confie plenamente em si mesmo, nem em outros homens, mas em Deus e seu amor. Não será por meio de planos políticos que acharemos a real fonte de valores, o sentido da vida e a redenção do mundo. Não é uma revolução mundial que mudará a história da humanidade e nos preencherá.

O sentido da vida está em algo muito menor que transformar o mundo em um paraíso, mas, ao mesmo tempo, muito mais trabalhoso: mudar a si mesmo e amar indivíduos. É fácil querer mudar o mundo. É difícil se dispor a mudar seus próprios maus hábitos e se tornar alguém cada vez mais amoroso, prestativo, sóbrio e perdoador. É fácil amar a humanidade. A humanidade é algo abstrato. Um agregado de pessoas desconhecidas. É difícil amar o indivíduo, aquele que está ao seu lado, que você vê, que é real.

No fim das contas, a proposta do cristianismo é dura e realista. O mundo continuará sendo um lugar cruel, injusto e difícil até que Jesus Cristo volte para resgatar aqueles que o aceitaram, condenar os que preferiram o mal e restaurar a Terra. A regra é clara na visão judaico-cristã: não há redenção, nem sentido, nem moral fora de Deus. Sem Deus, tudo o que nos resta é um mundo amoral, sem objetivo e sem esperança. A vida não é nada e a morte nos espera. E é para fugir a esse desespero de uma existência sem sentido que a religião política surgiu e sobrevive. A religião política é o ópio dos intelectuais antirreligiosos e anticristãos.

O fato inconveniente e inescapável é que todas as filosofias secularistas produzidas pela religião política não passam de plágios do cristianismo, contrafações da cultura religiosa que se tornou o pilar do mundo, o responsável cultural por elevar na mente e no coração de crentes e descrentes os nossos três sensos naturais. Buscando anular Deus e destruir o cristianismo, tais filosofias secularistas não conseguem se desvincular das sólidas bases de valor, sentido e redenção fincadas pela religião cristã na sociedade. São cristianismos distorcidos e sem Cristo, buscando um sentido fora de Deus. No entanto, se realmente há um Deus que tudo transcende, o mundo encontra o seu sentido apenas nesse Deus. E o cristianismo, a grande pedra no sapato desses intelectuais soberbos, provavelmente é tudo o que Homo spiritualis precisa para ser moral, completo e redimido.