Os cientistas chamam a espécie humana de
Homo sapiens. Seria mais apropriado nomeá-la como
Homo spiritualis ou
Homo religionis. O homem é inerentemente religioso. E a história do mundo, na verdade, é a história espiritual do ser humano. Tal fato pode soar estranho para quem tenha recebido uma educação secularista e para os indivíduos que não seguem, nem creem em nenhuma religião. Mas não há erro aqui. A constatação de que a espécie humana é religiosa, isto é, possui inclinação natural à religião não requer aceitação de que alguma religião é verdadeira, tampouco implica que todos os indivíduos sejam religiosos. Estamos falando de uma característica geral, de espécie, o que abarca a maioria dos indivíduos, mas não todos. Ademais, também não é necessário crer na veracidade de alguma religião para concluir o fato óbvio de que toda a história do mundo foi influenciada por pensamentos religiosos.
Essa influência da religião, tanto no sentido psicológico/biológico, quanto no sentido cultural/moral se encontra também em grandes ideias, movimentos e eventos seculares, tais como o iluminismo, a revolução francesa, o positivismo, o darwinismo, os diversos tipos de socialismo, o marxismo, o fascismo, o nazismo, etc. Todos esses movimentos, ideias e eventos possuem um objetivo redentor, sendo, portanto, religiões políticas. Eles surgem em razão da religiosidade intrínseca do homem em união com todo o arcabouço de pensamento religioso proveniente da cultura. Isso quer dizer que tais movimentos são religiosos na mesma medida em que são contrários à religião revelada tradicional (em especial, o cristianismo). São distorções da religião. E como toda a distorção, muitos de seus elementos descendem das tradições religiosas às quais se opõem.
O objetivo desse texto é trazer a lume essa concepção, mostrando o caráter religioso desses movimentos seculares, a impossibilidade de entendê-los plenamente sem levar em conta a influência psicológica e cultural da religião tradicional sobre a sociedade e, por fim, as razões que geraram esses movimentos distorcidos.
Os três sensos do ser humano
Há na espécie humana como um todo pelo menos três sensos inerentes que resistem à passagem do tempo, sobrevivendo em cada geração. O primeiro é o senso objetivo de valor e moral. Ele se constitui na capacidade e na necessidade de dar valores positivos e negativos a determinadas ideias, comportamentos e seres de forma objetiva. Explico melhor. Um homem olha para as pessoas a sua volta e reconhece que a vida delas importa. Ele está dando um valor positivo à vida das pessoas. Dessa capacidade de valorar as pessoas, surge a capacidade de julgar certos comportamentos e ideias como justos ou injustos, bons ou maus, certos ou errados. Se esse homem vê uma das pessoas a sua volta sendo morta, sabe que algo de valor foi arrancado ali. Dependendo da circunstância ele pode concluir que o homicídio foi covarde, injustificado, que a vida de uma pessoa (o que é importante) foi ceifada sem qualquer razão que valesse mais que aquela vida. O homem conclui que o homicídio foi errado, mau, injusto.
De modo semelhante, esse homem pode ver uma vida sendo salva no meio da multidão e concluir que isso foi certo, bom e justo, pois uma vida humana importa, tem grande valor. Estou usando apenas alguns de centenas ou milhares de exemplos. Em suma, o senso de valor e moral nos permite saber que atitudes como matar por motivo torpe, roubar, torturar, estuprar e explorar são atitudes ruins, ao passo que salvar uma vida, dar água ao sedento, ajudar o fraco e julgar com equidade são coisas boas. Esse senso nos permite saber que o amor é bom e deve ser cultivado, que o ódio é ruim e deve ser evitado. Ensina que existem direitos e deveres. Capacita-nos a fazer juízos de valor e juízos morais o tempo todo. Talvez se possa classificar tal senso como dois distintos que se relacionam intimamente. Mas tratarei nesse texto como um senso só.
O segundo senso inerente ao ser humano é o de sentido da vida. Ele se constitui na necessidade que a espécie humana tem de se engajar em alguma atividade que vá além da mera sobrevivência. Diferentemente dos animais e outros seres irracionais, o homem não se contenta com uma existência limitada à satisfação mecânica de necessidades fisiológicas. Acordar, buscar alimento, se reproduzir e dormir são fatores que, sozinhos, não satisfazem o ser humano. A espécie humana compartilha de um forte desejo por um objetivo de vida, que confira a cada indivíduo sensações de importância, pertencimento a um grupo e/ou projeto interessante, ocupação, alegria, prazer e consciência limpa; que ofereça algum tipo de desafio, conjunto de metas, roteiro, enredo, fases.
A necessidade humana de sentido da vida engloba tanto o lado subjetivo e autocentrado desse senso, no qual cada indivíduo busca um “algo mais” que faça bem a si próprio, quanto o lado objetivo, altruísta e comunitário, no qual o indivíduo anseia por satisfazer os desejos do próximo. Em um ser humano moral e psicologicamente saudável, os dois lados desse senso, o subjetivo e o objetivo, caminham juntos. Assim, esse ser humano saudável procura um sentido para a sua vida que, de alguma forma, colabore com um sentido da vida mais geral, que abarca os interesses de todo. Aqui fala alto a visão de si mesmo como parte de um todo maior, que é a humanidade (e que é formada por grupos menores, como a família e as comunidades locais).
Finalmente, o terceiro senso é o de redenção da humanidade. Ele se caracteriza como uma forte convicção de que existe algo errado no mundo a nível moral e que isso deve ser consertado. Em outras palavras, o mundo precisa de uma redenção para que passe a funcionar do modo correto. Geralmente, essa certeza se associa a alguma explicação sobre os motivos que levaram o mundo a situação caótica em que se encontra. Então, surge aí a pressuposição de que em algum momento do passado a sociedade não possuía os problemas morais e organizacionais que passou a ter. O senso de redenção leva diretamente à ideia de que o mundo será redimido de alguma forma, seja por ação direta do ser humano, por algum agente externo ou em conjunto.
Os três sensos elencados aqui estão intimamente relacionados. Sem o senso moral, não há como ter o senso completo de sentido da vida, nem o de redenção. A redenção só tem lógica se o homem puder olhar para determinada situação e dizer que ela é realmente justa ou injusta. E somente a possibilidade de fazer juízos de valor e morais objetivos pode criar um sentido real para a vida humana como um todo, tornar objetivamente bom o ímpeto de satisfazer o próximo e criar a obrigação moral de ajudar.
Sem a necessidade de sentido da vida, por sua vez, tornamo-nos meros animais, o que anula qualquer ímpeto de luta ou espera por redenção. E isso sufoca a moral até mata-la, pois se não há um sentido objetivo para a vida, a vida humana não tem um objetivo, nem um valor, de onde se deduz que tudo é permitido e não há regras reais. Tudo é questão de convenção e ilusão.
Já sem o senso de redenção, o sentido da vida coletiva desaparece, porque não haverá esforço ou aspiração pela resolução dos problemas sociais. A moral, por conseguinte, tenderá a sumir também, seguindo o desprezo pela redenção e o real sentido coletivo da vida.
A religião tradicional
Tendo visto os três sensos inerentes da humanidade, nos voltamos para uma análise da religião tradicional. Por religião tradicional, nesse texto, entendemos todo o conjunto de tradições religiosas diversas que possuem a crença no conceito filosófico de Deus. Aqui é importante enfatizar que Deus, na concepção filosófica, se distingue das divindades menores de religiões politeístas e panteístas. As divindades estão inseridas no contexto espaço-temporal, sendo elas criaturas também, embora mais poderosas que o homem e imortais. Na maior parte das tradições religiosas tribais ao redor do mundo, no entanto, conservou-se a ideia de um Deus anterior e superior a todas as divindades, o qual seria o criador. A tendência, ao longo do tempo, foi o ofuscamento desse Deus criador original e a ênfase de divindades menores. Uma das razões é o fato de que o Deus Criador não pode ser representado, enquanto que deuses menores são passíveis de representação. Na falta de uma figura palpável para adorar, as tribos foram levadas a venerar os astros, os antepassados e divindades representadas como animais ou homens.
O conceito de Deus criador, no entanto, atravessa os séculos e é resgatado pela religião hebraica/judaica, onde o monoteísmo se impõe pela lógica. Diferentemente das outras divindades, o Deus dos hebreus é superior a tudo o que há no universo, o que significa que Ele transcende tempo, espaço e matéria. É exatamente o mesmo conceito presente em religiões politeístas, com a diferença de que no hebraísmo dá-se um passo a mais na lógica: o conceito filosófico de Deus impõe a existência de um só Deus. Assim, todas as divindades ou não existem ou são meras criaturas, não devendo ser adoradas.
As conclusões do hebraísmo/judaísmo, por serem uma questão de lógica, são alcançadas também por filósofos gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles, a partir de observação e dedução. Deus é o primeiro motor do universo, a primeira causa, a fonte da vida e da ordem, a raiz do bem e do belo, e infinitamente superior a tudo. Os teólogos cristãos trabalharão sobre essas bases, entendendo Deus como a fonte primária de tudo. Assim, nossa moral, nossa razão e nossa vida se originam em Deus, que possui tais atributos como características intrínsecas. Deus é amor, é moral, é razão e é vida.
É a esse conceito filosófico de Deus que nos referimos como pilar do que entendemos, nesse texto, como religião tradicional. Não falamos, por ora, de uma religião específica, mas de todas as tradições que possuem esse elemento em comum.
Ora, a religião tradicional desempenha a função de ponte entre Deus e os homens. Ao admitir a noção lógica de que há um ente pessoal que transcendendo tempo, espaço e matéria, do qual advém a realidade moral, os valores objetivos, a razão e a vida, ela nos leva à conclusão de que os nossos três sensos inerentes só são satisfeitos nele. Não se trata aqui apenas de uma conclusão lógica, mas de uma necessidade psicológica inata ao ser humano. Se de fato Deus existe, só encontra satisfação plena em Deus, que é a fonte da moral, do sentido da vida e da redenção. Uma vez que a religião tradicional cumpre o papel de ponte para nos levar a Deus, isso significa que ela é, ao mesmo tempo, ponte para nos levar à satisfação plena de nossos três sensos. É por essa razão que a espécie humana é inerentemente religiosa.
Não surpreende que no desenrolar da história das religiões vê-se, em cada uma delas, justamente tais elementos: uma noção de valores e moralidade (ainda que, muitas vezes, distorcida), uma noção de sentido para a vida e uma noção de redenção. Também se vê outros elementos relacionados como uma narrativa para a queda do ser humano e um ser maligno que traz o pecado para o mundo. A história das religiões evidencia uma única tradição cultural original da qual descende todas as outras, bem como uma estrutura psicológica comum à espécie humana, que serve de base para a manutenção dos traços dessa cultura religiosa original. Alguns antropólogos e teólogos trabalham aqui com os conceitos de tradição adâmica e monoteísmo primitivo. Ambos versam sobre a origem comum das religiões em um tronco monoteísta com as noções de criação e queda do ser humano. As evidências arqueológicas, linguísticas, históricas e psicológicas de fato apontam para a veracidade desses conceitos.
O ser humano, portanto, é religioso pelo fator psicológico e pelo fator cultural, dois elementos que fortalecem e mantém um ao outro numa dialética constante. A cultura religiosa sustenta firme estrutura psicológica religiosa e esta, por sua vez, sustenta firme a cultura religiosa. Nós podemos afirmar, por conseguinte, que a religião tradicional é configurada de modo sócio psicológico.
A fuga de Deus e a distorção da religião tradicional
Fizemos uma avaliação da estrutura religiosa do ser humano. Cabe agora analisar o que ocorre quando o ser humano procura fugir de Deus e da religião tradicional.
O homem tem sede de Deus, pois só reconhecendo a sua existência como fonte de tudo e mantendo um relacionamento com Ele, pode saciar plenamente os seus três sensos. No entanto, há aqui um paradoxo. O mesmo homem que tem sede de Deus, tem propensão natural à imperfeição. Do ponto de vista evolutivo (para quem nisso crê) somos apenas animais, o que significa que temos instintos vis. O fato de possuirmos a faculdade da razão não muda isso, mas agrava. A razão nos faz perceber maior facilidade e certos lucros pessoais em agir mal, ao passo que também faz notar a dificuldade e os prejuízos pessoais de agir bem. A razão nos faz muito mais perigosos e potencialmente piores que os animais irracionais.
Do ponto de vista religioso, temos propensão à imperfeição porque o mundo perfeito criado por Deus foi corrompido por nossas escolhas. E a desarmonia resultante dessas escolhas maculou nossa natureza. Já nascemos inclinados ao egoísmo, à ganância, à raiva, à mentira, à promiscuidade, à desonestidade. Somos pecadores. É mais fácil errar do que acertar.
Nesse sentido, é a visão judaico-cristã que irá incrementar na sociedade uma noção mais apurada e refinada de busca pela moralidade e negação dos desejos vis. É o judaísmo e, principalmente, o cristianismo que moldará em grande parte do mundo a ideia de vencer a si mesmo, de exercitar virtudes e superar vícios. O cristianismo ensinará que ao homem cabe o autocontrole e a formação de um novo eu, o que o cristão fará não sozinho, mas com o auxílio ininterrupto do Espírito Santo. Assim, o
Homo spiritualis, imbuído de cultura judaico-cristã, se prenderá aos preceitos da religião tradicional, entendendo-se dependente de Deus para a reconstrução de si.
Uma vez, no entanto, que há livre arbítrio, muitos indivíduos irão preferir uma vida de vícios ou ainda, não desejarão saciar sua sede através de um relacionamento com Deus. Relacionamentos não são fáceis, requerem comprometimento, entrega, sacrifício, amor, aspectos que nem todos estão dispostos a doar. Com Deus não é diferente. Eis o x da questão. O homem tem sede de Deus como tem sede de água. Mas muitos preferem matar a sede com refrigerantes. O ser humano que nega a religião tradicional e a Deus, continuará com seus três sensos, necessitando saciá-los de alguma forma. A sede permanece. Na falta de Deus, onde o homem achará sentido? Na falta de um ser pessoal transcendente, do qual a razão, a moral, o sentido da vida é a redenção advém, a que religião o
Homo religionis irá se agarrar? Se a religião tradicional faz parte de seu ser, o que fará sem ela? O que colocará em seu lugar?
É aqui que surgem as tentativas de criar um novo sistema completo de sentido, algo que substitua a religião tradicional e a necessidade por Deus. Esses novos sistemas completos são também religiões. Porém, não mais religiões de matriz tradicional. Deus ou é tirado de cena, ou resumido ao papel irrelevante. O homem agora é independente, soberano, senhor de seu próprio destino. O sistema completo terá sua própria moral, seu próprio sentido coletivo, seu próprio plano de redenção, no qual a humanidade, através de ação política, salva a si mesma. Esta é a religião política.
A religião política pode ser entendida como uma distorção da religião tradicional, ou ainda, como uma tentativa de plágio. Ela surge não apenas da necessidade psicológica do homem por Deus, mas da cultura religiosa que retroalimenta as relações do homem com o metafísico. Assim, por mais que a religião política procure se opor e até destruir a religião tradicional, ela o fará justamente com as bases da religião tradicional. Esta é a razão pela qual o antirreligioso geralmente não passa de um religioso político.
A trajetória da religião política
Historicamente, os primeiros passos dados na direção da religião política ocorreram no período do iluminismo. O entusiasmo com o rápido surgimento de novas tecnologias e estudos voltados cada vez mais para o enaltecimento das capacidades humanas fizeram surgir ideias contrárias aos conceitos da religião tradicional e favoráveis a uma radical reformulação de tudo. Muitos, à título de se livrarem de distorções no âmbito da religião tradicional, jogaram a água suja fora com o bebê junto. E na falta do bebê, tomaram para si um simulacro de bebê.
Há dois exemplos icônicos de ideias que irrigaram a religião política nessa época. Uma foi o deísmo. Sustentando a concepção de que Deus existe e gerou o universo, porém não intervém na história do mundo, o deísmo se tornou a crença de muitos pensadores do período iluminista, como Edward Hebert, John Locke, Voltaire e Thomas Paine. Em maior ou menor grau, a ideia influenciou também pensadores cristãos, pavimentando o caminho para um cristianismo liberal, cada vez mais relativista e desfigurado.
Para os deístas, por mais que as religiões tradicionais tenham o seu valor como fonte de ética, nenhuma delas é verdadeira. Deus é o criador, a primeira causa, mas não se revela, não se comunica com o homem, não intervém e, portanto, não tem qualquer relevância na história do mundo e em nossas vidas individuais. Isso significa que a resolução de todos os problemas do mundo cabe unicamente à humanidade. Uma vez que os deístas do iluminismo se consideravam a geração iluminada de uma humanidade em constante evolução racional, era certo, para eles, que esses problemas seriam mesmo resolvidos. A humanidade pode. “We can do it!”.
Já para os cristãos mais liberais dessa época, o cristianismo não era abandonado, mas esvaziado. Milagres narrados na Bíblia eram tidos como símbolos, a Escritura deixava de ser totalmente inspirada e Jesus se tornava apenas um grande mestre da moral. Nos dois grupos, o dos cristãos liberais e dos deístas, havia um elemento em comum: Deus perdia o protagonismo e o homem era divinizado. O iluminismo, por mais que tenha popularizado algumas ideias boas, pode ser comparado a um adolescente: com excesso de confiança em si mesmo, afobado, impulsivo, desprezando a voz da experiência, não considerando a existência de certos limites e pilares a serem conservados.
Ao propor que o homem é praticamente o seu próprio deus, agiu como aquele jovem universitário, recém saído do ensino médio, que pretende revolucionar o mundo, sem antes conhecer melhor a si mesmo e revolucionar o seu próprio caráter; aquele jovem que cheio de ideias para resolver os problemas da humanidade, mas incapaz de lavar a louça em casa, arrumar o quarto, ser fiel em seus relacionamentos e permanecer sóbrio aos fins de semana. O iluminismo, tal como esse jovem, conferiu ao ser humano uma capacidade que ele não possui. E isso, como veremos mais adiante, nunca dá certo.
Um segundo exemplo icônico de ideia que irrigou a religião política foi a suposição de que o homem é essencialmente bom em sua natureza. O maior expoente do conceito foi o filósofo Jean-Jacques Rousseau. Em um ensaio denominado “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, o autor defende que o estado natural do ser humano não é a corrupção. A degradação da humanidade seria causada por alguns elementos surgidos da associação entre os homens, como as distinções entre o mais belo, o mais forte, o mais inteligente, e o advento das propriedades privadas. As distinções feitas entre os homens geraram os sentimentos de inveja, vaidade, desprezo, vergonha e raiva. E a passagem de propriedade de geração em geração, gerou riquezas díspares, relações de escravidão, violência e guerra. Em suma, o homem não era, para Rousseau, inclinado naturalmente à imperfeição, mas tornava-se imperfeito porque a sociedade estava estruturada de modo imperfeito.
As implicações desse conceito são muito amplas. Se o ser humano é naturalmente bom, racional e perfectível, e o problema do mundo está numa má configuração da sociedade apenas, basta a própria humanidade reconfigurar a sociedade e o mundo se transformará em um paraíso. É partindo de pressupostos semelhantes que diversos autores otimistas do iluminismo, sobretudo o francês, escreverão ensaios, artigos e livros com suas ideias de sociedade perfeita e os modos de alcançá-la. O homem iluminista, finalmente, tomou o lugar de Deus e destituiu a religião tradicional de seu posto como condutor para a moral, o sentido da vida e a redenção do mundo. A humanidade chegara ao seu ápice e não precisava mais de Deus, mas apenas de um bom projeto político, homens engajados e força de vontade. Estavam aqui criados os pilares da religião política.
A irracionalidade e as consequências desastrosas da religião política
O iluminismo vendeu à humanidade a ideia de que podia redimir o mundo sem Deus, através de algum plano político. Mas que plano? Como alcançá-lo? Cada pensador tem seu próprio conceito. E que ganhe o que conseguir emplacar o projeto mais bruto. Aqui começam os problemas. O primeiro eco prático da religião política ocorre na Revolução Francesa. Uma revolução regada aos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e um sonoro “não” à religião tradicional. Aos olhos dos iluministas, a primeira oportunidade de provar ao mundo suas ideias. “We can do it!”. O primeiro paraíso na terra está para sair do forno. Grande expectativa. O resultado? Err, bem... Um período do terror entre 1793 e 1794 instaurado pelos radicais jacobinos, que levou mais de 30 mil pessoas à morte por repressão; uma forte instabilidade política causada pelas lutas revolucionárias pelo poder; degradação moral, perseguição religiosa, perseguição política e, por fim, a assunção de um novo ditador, Napoleão Bonaparte, em 1799. Dez anos de violência e sangue que não levaram à nada.
Alguns pensadores da época, como Edmund Burke, perceberam os erros da Revolução Francesa desde seu início. O problema não estava em querer mudanças e lutar por elas, mas sim na forma como isso era feito e os fins que eram visados. A ruptura total e radical com tudo o que se via pela frente não levaria à construção de um mundo bom, mas à criação de instabilidade política e destruição de bases importantes da sociedade que levaram anos para serem erguidas e até mesmo pilares eternos. Os fins utópicos de uma sociedade perfeita só poderiam gerar frustração para os bem intencionados e oportunidades para os de mau caráter. A destruição indiscriminada de toda a estrutura da sociedade imbuiria o povo de desprezo pela prudência, pela sabedoria dos mais velhos, pelas lições da experiência e da história; formaria um povo de um espírito eternamente revolucionário, sem raízes em nada e, portanto, incapaz de reformar. Burke lembra que é mais fácil destruir do que construir e que, portanto, mudanças devem ser muito bem pensadas, no objetivo e no modo como serão feitas. A Revolução, como um adolescente inconsequente, não quis observar estas regras.
O espírito revolucionário permanece vivo após a Revolução Francesa e irá contaminar a muitos outros autores, dentre os quais se destacam Karl Marx e Friedrich Engels, que formularam a doutrina comunista ou marxista. Os dois autores dão alguns passos ainda mais ousados na consolidação da religião política. Deus agora é totalmente retirado de cena. Segundo eles, Deus não existe e a religião tradicional não passa de um ópio para o povo. Agora, o homem não reconhece mais a Deus nem mesmo como criador e fonte da moral e da razão. A divinização de nossa espécie está completa. Somos deuses.
Abraçando os ditames da religião política, a síntese da doutrina marxista propõe que o grande problema do mundo é a luta de classes. Há, em toda a história, uma luta interminável entre uma classe dominante e uma classe oprimida. Essa luta chega ao seu ápice no capitalismo. De um lado a classe proletária, oprimida, explorada, miserável. De outro lado, a classe burguesa, rica, dona dos meios de produção, exploradora. É desse cenário que surge, para os autores, a ganância, a violência, o desespero, as guerras, a fome, a destruição. E o que fazer para mudar isso? Atacar a base dessa desigualdade, a fonte dessa luta: a propriedade privada. Esse é o grande plano político redentor de Marx e Engels. É o que irá trazer a salvação do mundo.
Note que todos os elementos da religião tradicional estão no marxismo, como também estavam na Revolução Francesa. Há uma noção de moral objetiva: Marx e Engels olham para a exploração do proletariado e julgam que isso é mau, errado, injusto. Não é, para eles, uma opinião, mas um fato. É um juízo de valor e moral. Há uma noção de sentido individual e coletivo da vida: Marx e Engels desejam (ou, ao menos, vendem a ideia de que desejam) fazer algo por essas pessoas. É o que irá dar sentido às suas vidas e às vidas de outras pessoas. Há uma noção de redenção: a situação caótica do mundo não é normal e precisa ser mudada. Como se não bastasse, é possível ver no marxismo uma história de queda original do homem, um inimigo da raça humana a ser destruído, um Apocalipse e um paraíso final para os justos. Todos os elementos da religião tradicional presentes na cultura (sobretudo na visão judaico-cristã, mas também em quase todas as religiões) em nossos três sensos psicológicos inatos.
Não obstante, ao retirar Deus da equação, o marxismo tornou-se completamente falto de sentido lógico. Para começar, a existência de uma moral objetiva só é possível se ela estiver baseada em algo que transcende tempo, espaço, cultura, hábitos, gostos, instintos biológicos, etc. Se ela está baseada em qualquer desses elementos, não passa de algo aleatório, circunstancial e subjetivo. Para que uma ação seja considerada moralmente errada ou certa, justa ou injusta, boa ou má, independente de tempo, lugar ou cultura, a moral precisa estar além desses fatores, além do universo, fincada em algo imutável e acima de tudo. Uma vez que a moral é um atributo pessoal, esse algo só pode ser um ser pessoal. Assim, qualquer que sustente a existência de uma moral objetiva, está obrigado logicamente a aceitar que há um ser pessoal transcendente que é fonte da moral, o qual tradicionalmente chamamos de Deus. Esse conceito é explicado com mais detalhes em dois artigos que produzi a respeito do argumento moral para a existência de Deus (
aqui e
aqui), os quais fazem parte de uma série.
Ora, se a moral objetiva só pode existir no caso de Deus existir, anular Deus da história é anular a própria existência de moral objetiva. Sem essa fonte pessoal transcendente, a moral não passa de uma ilusão. Não há obrigação, direitos ou deveres reais. Não há uma base para dizer que algo é bom ou mau, de fato. Há simplesmente algumas regras de convivência que inventamos como meio de autoproteção. Invenção. É isso que a moral se torna em um mundo sem Deus.
Aqui nos perguntamos: de onde Marx e Engels tiraram a ideia de que a exploração de uma classe sobre a outra é algo ruim? De qual base transcendente essa ideia adveio? Se ela não veio de uma base transcendente, ela não é uma verdade absoluta e imutável. Se proveio de algo dentro do universo, como a época, o lugar, a cultura ou qualquer outra coisa, então é relativo e mutável. Logo, não é moral objetiva, mas subjetiva. E se é subjetiva, não é moral, mas apenas opinião.
Em um mundo sem Deus não há mais como valorar as ações ou pensamentos. Não há atos bons, ruins, justos, injustos, certos, errados. Há apenas atos. Atos sem valor. O mundo sem Deus não é imoral, mas amoral. Percebe qual é o primeiro problema do marxismo? Ele aponta uma injustiça em um mundo onde o conceito de injustiça já não faz o menor sentido, pois Deus não existe e nada tem valor objetivo.
Isso nos leva ao segundo problema do marxismo: se não há como valorar nada, também a vida humana e o que dela decorre não tem valor. Sem uma escala real de valores, não há como falar em sentido coletivo da vida. Afinal, não há mais como se dizer que a vida humana é importante e que devemos lutar por liberdade, igualdade, preservação do meio ambiente, manutenção da espécie, combate às injustiças, amor ao próximo. Sem uma escala de valores real restam apenas as perguntas: por que deveríamos? Para quê? Quem disse que devemos? Qual a base disso? A própria palavra “dever” não descreve mais nada real. Ninguém deve nada.
O mundo sem escala real de valores é um mundo sem Deus, a real fonte de valores. E sem Deus, a existência humana é apenas um acidente cósmico sem propósito. Ninguém nos projetou. Apenas surgimos. Não há um sentido para estarmos aqui, não há o que confira à nossa vida ou ao que quer que façamos uma importância objetiva. Não existe um norte que nos diga para onde devemos ir, simplesmente porque não faz diferença, porque não fomos projetados por ninguém superior, porque não há regras nem valores reais sobre todos nós, porque um dia todos nós deixaremos de existir.
Sem Deus e, consequentemente, sem uma escala de valores, o que resta são tentativas pessoais de dar algum sentido à própria vida. Mas tentativas pessoais são apenas isso: tentativas pessoais, gostos, opiniões. Se Marx e Engels se baseavam apenas em gosto quando diziam que a exploração era errada, então não se tratava de verdade absoluta, mas apenas do desejo pessoal deles, o qual era uma ilusão.
Aqui se chega, por fim, ao terceiro problema do marxismo: sem moral, escala de valores e sentido coletivo da vida, também não há sentido lógico na redenção. O conceito de redenção só pode existir se realmente existir bem e mal, e um propósito superior para a vida humana. Sem esses fatores não há do que redimir o mundo. O desejo de mudar o mundo e o sentimento de que isso é uma obrigação só são reais se Deus também for uma realidade. Do contrário, o que temos são apenas invenções humanas; um ópio para esquecer que a vida nada é. Eis uma grande ironia: Marx e Engels chamavam a religião tradicional de ópio do povo. Mas se Deus existe, a religião tradicional é a verdade. Se, no entanto, Deus não existe, a dupla estava absolutamente dopada de ópio. Ou seja, o próprio marxismo, em sua estrutura, é um ópio, uma ilusão.
Ainda que o marxismo revisse seus conceitos, sustentando que Deus existe, para poder contar com a moral, a escala de valores e o sentido da vida, não teria sentido lógico. Isso porque a redenção só pode ser levada a cabo por Deus, que é perfeito. O homem, por sua imperfeição, não tem aptidão para mudar o mundo. Este foi o erro em que caíram os revolucionários franceses. E foi o erro em que caíram também todos os revolucionários comunistas. Mais uma vez: expectativas. O mundo será mudado. “We can do it!”. E o resultado? Os diversos regimes comunistas/socialistas que se instauraram pelo mundo no século XX geraram ditaduras, perseguições políticas, perseguições religiosas, guerras civis e fomes extremas.
O marxismo falhou em se tornar a salvação da humanidade. E falhou em todas as áreas que poderia. A começar por sua visão antropológica otimista. Mesmo que o ser humano fosse bom por natureza, como sustentava Rousseau, ele está corrompido pela corrupção da sociedade. Corrompido culturalmente. De que maneira homens corrompidos poderão descorromper a sociedade? De que maneira homens imperfeitos em uma sociedade corruptora não se tornarão demônios ao receberem nas mãos todo o poder? Pois é isso o que o marxismo propõe: todo o poder nas mãos do Estado, o qual é dirigido por homens socialmente corrompidos. Isso se a inclinação ao mal não está na natureza humana, o que torna tudo ainda mais difícil. De que maneira o homem pode obrigar o mundo todo de seguir suas ideias de salvação do mundo senão por meio da força? É o que propõe o marxismo. É o que propôs a Revolução Francesa. A redenção não veio. A redenção não pode vir pela força de homens maus em uma ditadura sanguinária.
O marxismo falhou também em ser a redenção do mundo na área econômica. Ludwig von Mises, economista austríaco, já previa, em um artigo publicado em 1920, que os sistemas socialistas são impossíveis de funcionar economicamente. Sua análise contava com “profecias” sobre escassez de alimentos e desordem na produção. Década após década, elas foram se cumprindo em cada economia planificada. O sucesso da teoria de Marx e Engels se mede apenas pela riqueza e o poder dos burocratas e ditadores. Para a população o saldo foi amargo. Miséria, repressão e cerca de 100 milhões de mortos só no século XX. Os regimes socialistas continuam matando no século XXI, na Coreia do Norte, em Cuba e na Venezuela.
Os religiosos políticos poderiam ter desistido de suas premissas ilógicas e reconhecido que estavam errados. Mas cada qual escolheu permanecer com seu projeto salvador. Na Itália, Benito Mussolini, que passou toda a juventude no marxismo, percebeu que ideias como religião, pátria e raça poderiam ser úteis para unir o povo em prol de um ideal de nova sociedade. Criou o fascismo, que via no poder absoluto e perpétuo do Estado a fonte moral, o sentido coletivo e a redenção da sociedade italiana. Uma ideia absurda, um tirano, a habitual sede de poder do ser humano e mais resultados negativos: mortes, repressão, perseguição.
Adolf Hitler também fez sua tentativa. Em seu livro “Mein Kampf”, emplaca a ideia de que o grande problema da sociedade eram os judeus, que espalhados por toda a Europa, pretendiam dominar o mundo. Aqui estava eleito o inimigo. Uma raça degenerada, que enriquecia às custas dos alemães e de outros povos europeus, e que saíam lucrando tanto do lado burguês, quanto do lado comunista. Para Hitler, o marxismo não passava de um engodo criado por judeus para enganar proletários. Não se tratava de um socialismo de fato, mas de uma doutrina judaica que pretendia destruir fronteiras e dar poder ao que Hitler chamava de “Capitalismo Internacional Judaico”. Apenas o nacional socialismo poderia salvar a Alemanha e o mundo desta desgraça. E era justamente a raça ariana de sangue alemão que estava mais apta para essa missão.
Forte intervenção do governo, economia planificada, totalitarismo, perseguição de um grande inimigo da revolução, repressões. O nazismo de Hitler seguiu o mesmo script da Revolução Francesa, dos socialismos marxistas e do fascismo de Mussolini. Milhões de pessoas foram mortas. Uma guerra mundial foi gerada. E nada do mundo perfeito ser construído.
O alto clero da religião política e ópio dos intelectuais
Esses movimentos desastrosos poderiam servir de exemplo para o homem abandonar de vez a religião política. Não deu certo para o povo. Só dá certo para os ditadores, para os que têm sede de riqueza e poder. O sangue derramado de milhões de vítimas deixa isso mais do que claro. Entretanto, pessoas em locais estratégicos da sociedade continuam alimentando as bases da religião política. Diversos jornalistas, sociólogos, antropólogos, biólogos, psicólogos e professores universitários passam suas vidas panfletando ideias como a de que o homem é um ser naturalmente bom e o problema do mundo não está na natureza humana; que a humanidade é perfectível e, portanto, capaz de construir um paraíso na terra através de um projeto político; que Deus não existe, ou é mero capacho da espécie humana, dependente de nossos projetos “infalíveis” de mundo paradisíaco, quando não um figurante irrelevante no grande palco da história.
Ideias originalmente bem intencionadas, surgidas de sentimentos humanitários sinceros, se tornam ferramentas de alienação de jovens universitários sonhadores, adolescentes irresponsáveis e, posteriormente, todo o restante do povo. As mesmas ideias são usadas por políticos e ideólogos para alcançar poder, fama status e riqueza. Ambientalismo, feminismo, movimentos negros, organizações pró-direitos humanos, grupos em favor de minorias oprimidas, tudo, absolutamente tudo, pode ser usado pelos burocratas do poder e seus ideólogos para legitimar o aumento do poder do Estado sobre a sociedade, o que garante muita influência, autoridade e riqueza para os que controlam o Estado ou seus parceiros de negócios e amigos próximos. E tudo, absolutamente tudo, pode ser vendido como um novo projeto redentor, infalível, repleto de sentido e moral, mas que no fim, sabemos, não dará em nada. A religião política tem um alto clero corrupto e uma horda de fieis enganados que sustentam seus dogmas ilógicos.
Nessa terrível contrafação da religião tradicional, um dos elementos mais importantes para a sua manutenção é a mentira. A religião política mente incessantemente. Ela se coloca como a mãe das virtudes, em oposição à religião tradicional, principalmente o cristianismo. Há uma clara predileção pela religião política em atacar o cristianismo, já que é sobre as bases da religião cristã que todo o ocidente foi erguido e todo o mundo foi influenciado. A cultura judaico-cristã causa fúria nos religiosos políticos e, por isso, há uma cruzada contra tudo o que é cristão. Uma cruzada de mentiras.
Pela boca de cientistas mal intencionados (ou mal informados), a religião política dirá que o cristianismo é contrário à ciência. Mentira! Os primeiros grandes cientistas do ocidente eram, em sua maioria, cristãos devotos, que entendiam o conhecimento como benção de Deus e evidência de sua sabedoria. A ciência só floresce no mundo por causa do pressuposto cristão de que um Deus racional projetou um universo também racional, regido por leis fixas. Este pressuposto está na Bíblia. Como também está na Bíblia uma série de passagens incentivando cada fiel a manter uma postura de busca pela sabedoria e questionamento para conhecer a verdade. Não fossem os pressupostos cristãos, ainda estaríamos adorando o sol, a lua, comendo tribos inimigas e matando casuais Sócrates que surgissem com uma filosofia mais racional. É o que o mundo pagão fazia.
Por feministas modernas, a religião política dirá que o cristianismo é machista e oprime as mulheres. Ela não mencionará que a Bíblia está repleta de textos que ordenam o respeito e o amor às mulheres, ou que grande parte das primeiras feministas eram cristãs devotas, ou que muitos homens cristãos lutaram ao lado das mulheres pelos direitos e dignidade. O feminismo moderno simplesmente apaga a participação cristã da história e deixa de representar mulheres religiosas e conservadoras, preferindo seguir uma agenda política.
Por pretensos defensores dos pobres e oprimidos, a religião política dirá que a religião cristã nada faz pelos desfavorecidos. Não dirá, é claro, que hospitais e escolas públicas existem por causa do cristianismo. Não mencionará que a Bíblia conta com dezenas de textos repetindo como ordem a assistência aos órfãos, viúvas e estrangeiros (as classes mais necessitadas das épocas bíblicas). Não lembrará o quanto as milhares de igrejas e os milhões de cristãos espalhados pelo mundo ajudaram, ao longo dos séculos, e ajudam ainda hoje pessoas em dificuldade com cestas básicas, remédios, tratamentos médicos, apoio psicológico, construção de abrigos, etc. As grandes instituições cristãs de apoio e o grandes nomes cristãos da ajuda humanitária serão propositalmente esquecidos.
A religião política não lembrará que foi pela luta de milhares de cristãos verdadeiros que a escravidão, tão comum na história do mundo, fosse gradualmente amenizada até ser extinta no mundo ocidental. Nem reconhecerá que, quando a prática ressurgiu, por uma influencia de tribos africanas que ainda a praticavam e negociavam seus escravos para europeus, mais uma vez milhares de cristãos verdadeiros lutaram contra ela, baseados na noção bíblica de que todos os homens são iguais em dignidade, pois foram criados à imagem e semelhança de Deus, o mesmo que se sacrificou pelo mundo mediante Jesus, o Cristo.
Por mais que a religião tradicional tenha sofrido com distorções internas ao longo dos séculos, incluindo aí o cristianismo, o fato é que o problema nunca esteve na crença em Deus ou na sustentação da Bíblia Sagrada. O surgimento de religiões violentas, imorais, discriminadoras e ilógicas são distorções da religião original, da tradição adâmica da qual todas as outras descendem. Essas distorções se distanciam da vontade de Deus. Da mesma forma, as distorções no interior do cristianismo (que se vê como herdeira direta da religião original), levam muitos cristãos a agirem contrariamente ao próprio ensino bíblico, destoando da vontade santa de Deus.
Um cristão que espanque sua esposa ou que, podendo ajudar, não estende a mão ao necessitado, não está agindo em conformidade com o cristianismo puro, com o padrão bíblico, com o desejo de Deus. E quanto mais um cristão se afasta do cristianismo, obviamente menos pode ser chamado de cristão. O problema, portanto, não está no cristianismo, mas em suas distorções. Ao homem que quer ser um bom cidadão, filho, esposo, pai, vizinho, amigo, enfim, humano, basta ser um bom cristão. O mesmo serve para mulheres. O cristianismo, quando seguido puramente, não gera homens dispostos a matar, roubar e fazer sofrer, mas a se doar a Deus e ao próximo por amor. E é por meio desse amor (para os cristãos, gerado por Deus em nós através de nossa aceitação dEle), que podemos nos descorromper gradualmente e impactar positivamente o mundo.
O cristianismo verdadeiro mantém os pés no chão. Reconhece a miséria interior do ser humano. Somos inclinados ao mal, imperfeitos moral e administrativamente. É mais fácil errar do que acertar. É mais fácil distorcer do que seguir a verdade. O cristianismo verdadeiro põe o homem em seu lugar. A mensagem básica da tradição judaico-cristã ao homem é: não confie plenamente em si mesmo, nem em outros homens, mas em Deus e seu amor. Não será por meio de planos políticos que acharemos a real fonte de valores, o sentido da vida e a redenção do mundo. Não é uma revolução mundial que mudará a história da humanidade e nos preencherá.
O sentido da vida está em algo muito menor que transformar o mundo em um paraíso, mas, ao mesmo tempo, muito mais trabalhoso: mudar a si mesmo e amar indivíduos. É fácil querer mudar o mundo. É difícil se dispor a mudar seus próprios maus hábitos e se tornar alguém cada vez mais amoroso, prestativo, sóbrio e perdoador. É fácil amar a humanidade. A humanidade é algo abstrato. Um agregado de pessoas desconhecidas. É difícil amar o indivíduo, aquele que está ao seu lado, que você vê, que é real.
No fim das contas, a proposta do cristianismo é dura e realista. O mundo continuará sendo um lugar cruel, injusto e difícil até que Jesus Cristo volte para resgatar aqueles que o aceitaram, condenar os que preferiram o mal e restaurar a Terra. A regra é clara na visão judaico-cristã: não há redenção, nem sentido, nem moral fora de Deus. Sem Deus, tudo o que nos resta é um mundo amoral, sem objetivo e sem esperança. A vida não é nada e a morte nos espera. E é para fugir a esse desespero de uma existência sem sentido que a religião política surgiu e sobrevive. A religião política é o ópio dos intelectuais antirreligiosos e anticristãos.
O fato inconveniente e inescapável é que todas as filosofias secularistas produzidas pela religião política não passam de plágios do cristianismo, contrafações da cultura religiosa que se tornou o pilar do mundo, o responsável cultural por elevar na mente e no coração de crentes e descrentes os nossos três sensos naturais. Buscando anular Deus e destruir o cristianismo, tais filosofias secularistas não conseguem se desvincular das sólidas bases de valor, sentido e redenção fincadas pela religião cristã na sociedade. São cristianismos distorcidos e sem Cristo, buscando um sentido fora de Deus. No entanto, se realmente há um Deus que tudo transcende, o mundo encontra o seu sentido apenas nesse Deus. E o cristianismo, a grande pedra no sapato desses intelectuais soberbos, provavelmente é tudo o que
Homo spiritualis precisa para ser moral, completo e redimido.