sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A Igreja Católica Apostólica Judaica

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Se fosse necessário dar um nome para a Igreja instituída por Jesus no primeiro século, esse nome deveria ser "Igreja Católica Apostólica Judaica" e não romana. Os primeiros cristãos eram judeus e continuaram se sentindo judeus após a ascensão de Cristo aos céus. Jesus não representava, para eles, o fundador de uma nova religião, mas o Messias Judaico. Assim, era natural continuar indo à sinagoga aos sábados, lendo as Escrituras Judaicas e cumprindo seus mandamentos. Também os gentios não enxergavam esses primeiros cristãos como membros de uma nova religião, mas como judeus comuns, frequentadores de sinagogas e guardadores do sábado. 

O evangelista Lucas, autor do livro bíblico Atos dos Apóstolos, menciona a ida de cristãos à sinagogas judaicas de pelo menos nove cidades pagãs: Damasco (At 9:2), Salamina (At 13:5), Antioquia (At 13:14), Icônio (At 14:1), Tessalonica (At 17:1-4), Bereia (At 17:10), Atenas (At 17:16-17), Corinto (At 18:1-4) e Éfeso (At 18:19). O historiador também cita o costume de Paulo e seus companheiros de dedicarem o sábado a Deus nas sinagogas (At 13:16, 13:42-22, 17:1-3 e 18:1-4). O apóstolo Paulo, aliás, quando trabalhou confeccionando tendas em Corinto, disponibilizava justamente o sábado para pregar o evangelho o dia inteiro. E mesmo após se irritar com judeus incrédulos e dizer que a partir dali focaria nos gentios (At 18:6), ele torna a pregar em sinagogas, na cidade de Éfeso, permanecendo ali por dois anos e convertendo tanto judeus naturais quanto gregos que iam à sinagoga (At 18:18-19 e 19:8-10). 

Ainda sobre Paulo, suas defesas contra acusações de judeus incrédulos também denotam uma forte sintonia com os hábitos judaicos. Ele reafirma seu judaísmo étnico e suas raízes religiosas judaicas (At 22:3); considera-se fariseu (At 23:6); afirma estar sendo julgado apenas por crer na mesma coisa que criam seus acusadores: a ressurreição dos mortos (At 23:6);  ressalta que acredita em tudo o que está na lei e nos profetas, incluindo a ressurreição - tal como os fariseus que o acusavam (At 24:14-15); deixa claro que foi pego por seus oponentes sem estar transgredindo a lei, desempenhando ainda uma prática judaica (At 24:17-19) e torna a dizer que está sendo julgado apenas por crer na ressurreição (At 24:20-21). 

Em Atos 25:7, vários judeus incrédulos rodeiam o apóstolo e o acusam, perante o governante romano Festo, de várias transgressões que não podiam provar. Paulo responde, no verso 8: "Nenhum pecado cometi contra a lei dos judeus, nem contra o templo, nem contra Cesar". Continua nos versos 10 e 11: "Estou perante o tribunal de César, onde convém seja eu julgado; nenhum agravo pratiquei contra os judeus, como tu bens sabes. Caso, pois, tenha eu praticado algum mal ou crime digno de morte, estou pronto para morrer; se, pelo contrário, não são verdadeiras as coisas de que me acusam, ninguém, para lhes ser agradável, pode entregar-me a eles". 

Fica claro que Paulo tinha a convicção sincera de não estar transgredindo ponto algum do judaísmo. Sua visão, como a dos demais cristãos, não era a de um rompimento com a religião judaica e a aceitação de uma nova religião. Era, sim, da manutenção de uma mesma religião, mas agora com a revelação plena do Messias. Podemos ver esse mesmo senso de pertencimento à religião judaica no apóstolo Pedro. Em Atos 10, quando Pedro tem a visão dos animais imundos e Deus lhe ordena que se alimente deles, responde: "De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi coisa alguma comum ou imunda" (At 10:14). A visão era uma parábola, conforme a continuação do capítulo 10 e o capítulo 11 demonstram. Os animais imundos simbolizavam os gentios e a instrução da parábola era que os judeus deveriam pregar o evangelho a estes, sem distinção. Para os propósitos deste post, contudo, o que importa é enfatizar que Pedro continuava guardando a dieta alimentar judaica. 

O apóstolo João também dá indícios de que ainda se sentia um judeu (ou que Jesus queria que ele se sentisse assim). Em Apocalipse 2:9 e 3:9, descrevendo as palavras que recebeu de Jesus, utiliza os termos "Sinagoga de Satanás" e "judeus que a si mesmo se declaram judeus e não são" para criticar uma classe de desobedientes. O Apocalipse, aliás, está repleto de termos e conceitos judaicos advindos dos livros proféticos do Antigo Testamento. Parece haver não só uma visão do judaísmo como a religião dos primeiros cristãos como um cuidado, sobretudo nesses dois textos, de mostrar aos cristãos que eles não deveriam perder suas raízes judaicas. Não nos referimos, claro, aos erros, preconceitos e tradições humanas que se infiltraram no judaísmo, mas sim daquilo que compunha, de fato, o conjunto de princípios dados por Deus ao povo judeu. Embora Deus já não tivesse um povo no sentido étnico, com uma pátria, uma língua e um governo teocrático, o judaísmo como religião permanecia. 

O apóstolo Tiago, irmão de Jesus, também demonstrava manter fortes laços com o judaísmo. Quando Paulo foi até Jerusalém, após alguns anos de missão, ouviu dele e dos presbíteros da Igreja de lá: "Bem vês, irmão, quantas dezenas de milhares de judeus que creram, e todos são zelosos da lei" (At 21:20). É evidente, como a própria continuação desse texto indica, que entre os judeus crentes em Cristo havia muitos judaizantes. Estes não entendiam que, conquanto a religião permanecesse a mesma, alguns preceitos ritualísticos haviam deixado de vigorar, por previsão da própria lei judaica, em função do sacrifício de Cristo. Isto não era uma quebra da lei ou uma abolição do judaísmo, mas apenas o cumprimento de uma previsão que estava de acordo com a Lei e os Profetas. Era por isso que Paulo se sentia confortável em dizer que não transgredia qualquer lei judaica e permanecia judeu. Era verdade, não mera estratégia mentirosa para se livrar de condenações. 

O problema é que os judaizantes não entendiam assim. Para eles, Paulo ensinava a transgressão da lei (At 21:21) e o boato acabava sendo comprado por grande parte da Igreja de Jerusalém, além dos judeus incrédulos.

O próprio Tiago, no entanto, não era um judaizante. No primeiro grande concílio da Igreja Cristã, em Jerusalém, apóstolos, presbíteros e alguns nomes importantes entre os primeiros cristãos se reuniram para discutir se a circuncisão deveria ser requerida dos gentios para a salvação. Aparentemente, Jesus não havia deixado qualquer observação quanto a isso e grande controvérsia estava ocorrendo entre os partidários da circuncisão para salvação e os adeptos da incircuncisão (At 15). Houve um grande debate nesse concílio, mas ao fim dos testemunhos de Pedro, Paulo e Barnabé à favor da não necessidade de circuncisão, Tiago, como líder da Igreja em Jerusalém, tomou a palavra final e também votou pela desobrigação do rito aos gentios conversos (At 15:13-21). Mas, apesar de não judaizante, Tiago permaneceu judeu. São dele as contundentes palavras:

"Se vós, contudo, observai a lei régia segundo a Escritura: 'Amarás o teu próximo como a ti mesmo', fazeis bem; se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo arguidos pela lei como transgressores. Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos. Porquanto, aquele que disse: 'Não adulterarás' também ordenou: 'Não matarás'. Ora, se não adulteras, porém matas, vens a ser transgressor da lei. Falai de tal maneira e de tal maneira procedei como aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade" (Tg 2:8-12).

Essa relação positiva com o decálogo era comum a todos os primeiros cristãos. Paulo, por exemplo, cria claramente na vigência do decálogo (Rm 13:9, Ef 6:2, I Co 7:18-19 e Rm 2:17-29) e asseverava que quem se mantinha na transgressão dos mandamentos morais de Deus, que são derivados do decálogo, não entraria no Reino de Deus (I Co 6:9-10 e Gl 5:19-21). Embora seu ensino fosse de que os mandamentos não salvam, nem purificam, apenas demonstram nossos erros, ele não deixa de afirmar que a lei não é pecado (Rm 7:7), que ela é santa e que seus mandamentos (tal como o de “não cobiçar”) são santos, justos e bons (Rm 7:12). Ele também faz questão de dizer que a lei é espiritual e que o ser humano é que é carnal (Rm 7:14). Ele diz ainda que a lei é boa (Rm 7:16) e que, embora ele não consiga seguir a lei com sua própria força (pois é pecador), ele tem prazer nela (Rm 7:22). O único problema da lei, segundo o apóstolo Paulo, é que ela não tem como fazer o pecador segui-la. Mas Paulo ensina que esse problema é resolvido por Jesus Cristo.

João, por sua vez, enfatizou muito a observância dos mandamentos em seus escritos (I Jo 2:3-6, 3:22-24 e 5:2-3; II Jo 1:5-6; Ap 12:17 e 14:12). É verdade que João costuma a usar a fórmula resumida do decálogo, que foi ensinada por Jesus (Mt 22:36-40 e Mc 12:28-34). Mas essa fórmula de Jesus, longe de anular o decálogo, apenas demonstra que o mesmo possui dois mandamentos principais da Torá que lhe servem de base. Assim, um judeu que observe os dois, automaticamente observará todo o decálogo e mais todas os mandamentos morais que se desdobram a partir do decálogo, desde não assassinar até não odiar.

Interessante é que a descrição feita pelo evangelista Marcos nos traz uma prévia do que os autores do Novo Testamento discutiriam sobre a lei décadas mais tarde. Após Jesus responder quais eram os dois mandamentos-base de todo o conjunto de leis da Torá, o escriba que o interpelou disse: “Muito bem, Mestre. Com verdade disseste que ele é um, e fora dele não há outro; e que amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc 12:32-33). Marcos continua sua descrição da cena: “E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse-lhe: ‘Não estás longe do reino de Deus’. E ninguém ousava mais interrogá-lo” (Mc 12:34). O leitor percebe? Jesus já deixava uma pista de que a discussão posterior seria mandamentos morais x sistema sacrificial – o qual se relacionava intimamente com as festas e feriados judaicos.

Que Jesus Cristo demonstrou grande reverência pelo decálogo fica claro nas passagens que descrevem o diálogo com o jovem rico (Mt 19:16-19, Mc 10:17-19 e Lc 18:18-20), no sermão do monte (Mt 5:17-20) e na última ceia com seus discípulos (Jo 14:15-21 e Jo 15:9-10).

A exposição deste pano de fundo nos ajuda a visualizar melhor como o afastamento entre judaísmo e cristianismo foi muito gradual nas primeiras décadas após a ascensão de Cristo e que não havia uma identidade cristã própria e plenamente desconectada do judaísmo na Igreja. A Igreja das primeiras décadas era formada basicamente por judeus, por gentios frequentadores de sinagogas e por judaizantes. As sinagogas continuaram sendo o local de adoração de muitos cristãos e foi também, por bastante tempo, o principal local de pregação do evangelho, onde eram alcançados judeus e gentios. O ponto de encontro entre o evangelho e os gentios era justamente às sinagogas plantadas nas cidades pagãs. 

Os cristãos aproveitavam as sinagogas judaicas para pregar justamente porque ainda se sentiam judeus e entendiam que pregar Jesus nas sinagogas não era pregar outra religião, mas apenas anunciar as boas novas do Messias Judaico. Era tão natural quanto alguém hoje ir a uma igreja de outro país, ler a Bíblia e dizer que Jesus é Deus. Seria estranho, no entanto, fazer isso numa Mesquita islâmica, num centro de Umbanda/Candomblé  ou mesmo num Salão do Reino das Testemunhas de Jeová (que embora creiam na Bíblia, não creem na divindade de Jesus, nem na Trindade).

O cenário da igreja do primeiro século é um cenário majoritariamente judaico e a sede da Igreja era a Congregação em Jerusalém, na qual os apóstolos ficaram durante muito tempo. E é por isso que a guarda do sábado durante esta época foi (com alta probabilidade histórica) algo bastante natural e intuitivo. Na Igreja de Jerusalém, conforme o próprio texto de Atos afirma, havia dezenas de milhares de judeus crentes zelosos da lei. Ou seja, guardavam o sábado e frequentavam sinagogas. Os gentios crentes de lá, portanto, certamente faziam o mesmo. O hábito ainda era seguido por todos os judeus e gentios crentes das cidades pagãs que mantinham sinagogas, conforme também os textos apontam. 

Nas duas décadas finais do primeiro século, no entanto, os cristãos já não tinham mais nenhum contato com sinagogas e a cultura judaica. Esse afastamento provavelmente se iniciou por volta do ano 70 d.C. com o aumento da antipatia dos judeus incrédulos para com os cristãos. Por volta do ano 90 d.C. já estava consolidada efetivamente a divisão e o cristianismo já não era mais visto, nem mais se via, como fazendo parte da religião judaica. Estavam abertas as portas para mutações em sua teologia em busca de uma identidade própria, desconectada o tanto quanto possível de suas raízes judaicas. É isso que vai alimentar, nas décadas seguintes, um sentimento antijudaico no que concerne a teologia cristã, a qual ajudará a colocar para dentro do cristianismo uma teologia que se orientava pelo antijudaismo em grande parte.

O vácuo deixado pela perda de importância da Igreja de Jerusalém (tão relevante para a Igreja nas primeiras décadas de cristianismo) e pela morte de todos os apóstolos (que eram judeus) será suprido por uma influência cada vez maior da Igreja em Roma. Por duas razões básicas: ser a Igreja da capital do império e contar com um grande número de cristãos não provenientes do judaísmo. Assim, de maneira gradual, a Igreja que se via inicialmente como judaica e detinha sua matriz de influência na cidade de Jerusalém, passará a forjar uma nova identidade religiosa/cultural, passando a se enxergar como não judaica e adotando como matriz a cidade de Roma. 

Como se vê, este processo é bem anterior ao imperador Constantino. Na verdade, foi esta separação vagarosa entre cristianismo e judaísmo, seguido do desenvolvimento de uma teologia cristã não judaica (e até antijudaica em alguns pontos), que pavimentou o caminho para que um dia o referido imperador pudesse iniciar a união entre a Igreja Cristã e o Estado Romano, no quarto século. E é outro imperador, chamado Justiniano, que finalizará o processo no sexto século. A Igreja se torna, então, totalmente romana, como se o cristianismo tivesse surgido em Roma. Suas raízes judaicas jazem totalmente esquecidas ou, quando muito, taxadas como judaizantes. 

Obs.: Esse texto é um resumo das ideias expostas no meu texto: “Quinze razões para guardar o sábado – Parte 2”. A razão 10, que fala sobre as raízes judaicas da Igreja Primitiva, eu usei quase na íntegra aqui. Já a razão 11, que fala sobre a relação dos primeiros cristãos com o decálogo e a lei, eu só usei alguns trechos. Recomendo a leitura do texto citado, e com a Bíblia do lado, para checar todas as referências.