Fui fazer uma prova de concurso público nesse
último domingo. O segundo ônibus que peguei para chegar ao local devido estava
entupido de pessoas indo prestar o exame também. Naquele momento, tive a forte
confirmação de que todos ali (incluindo eu) éramos gado. Enfurnados numa lata
para fazer uma maldita prova que representa para alguns a última (ou única)
alternativa de ter uma vida mais digna.
A revolta de ver tanta gente precisando se
submeter àquele processo e a náusea de eu mesmo precisar estar lá é indescritível.
Trata-se de um sistema nojento e cruel, onde a melhor opção de vida digna é
disputar com “concurseiros profissionais” algumas vagas para fazer menos e
ganhar mais (em relação ao setor privado) à custa justamente dos que fazem mais
e ganham menos.
Não, não se trata de generalização. Falo de cargos
administrativos, nos quais reina a lerdeza e o descaso no setor público. Lembro-me
de um amigo, comentando sobre um conhecido que foi aprovado num desses cargos.
Entrou dedicado, querendo acelerar os processos, e recebeu do chefe de setor
um: "Calma, rapaz. Vamos ver essas coisa só semana que vem ou depois. Não
precisa correr aqui".
Esse é um "bom" chefe. Um chefe pior,
vendo o esforço do dedicado funcionário, colocaria tudo nas costas dele, como já
ocorreu no passado com uma tia-avó. Ela diz hoje: "Não mostre muito
serviço no setor público. Senão os descansados vão jogar tudo nas suas
costas". Essa é a dinâmica do sistema. E não há problema. O salário está
garantido e a estabilidade estão garantidos. Opa! Nem tanto. Uma hora a conta
chega, não é mesmo? Um país que incha sua máquina pública, incentiva a cultura
concurseira, desestimula o empreendedorismo e cria um ambiente péssimo para a
melhoria das condições dos trabalhadores no setor privado, uma hora vai à
bancarrota. Uma hora vai faltar dinheiro até para o setor público. E se falta
dinheiro, obviamente quem vai receber primeiro e sem interrupções não são os
que estão nos postos mais baixos dessa pirâmide, mas sim políticos,
secretários, ministros, assessores, presidentes e diretores de estatais, juízes,
procuradores, em suma, todos os que ganham mais, tem mais benefícios e menos
trabalham. O sistema, no fim das contas, acaba engolindo até o concurseiro que
tanto almejou estabilidade e salário alto.
Isso não é uma crítica a quem presta concurso,
mas ao sistema. Aquele que presta concurso é mais uma vítima. Só há muitos
concurseiros hoje porque (1) não existem muitas opções melhores de emprego fora
da esfera pública, (2) há muitos concursos, (3) pagam muito bem, (4) oferecem
estabilidade. Esse é o sistema. E ele começa com o solapamento do setor
privado.
Eu trabalho no setor privado e sei como a coisa
funciona. Tomemos minha empresa como exemplo. Possui cerca de 150 funcionários.
Se cada um receber um aumento de 100 reais no salário, isso representa um
aumento de 15 mil reais mensais de custo para a empresa. Acha pouco? Mas não é.
Eu faço parte do setor financeiro/administrativo da empresa e conheço todas as
contas. Vejamos o que é esse custo para nós.
Quinze mil é o valor do Vale Transporte de um mês
de todos os funcionários. Quinze mil pagam o plano de saúde de um mês e meio
dos funcionários que o aderiram. Ou dez meses de materiais de limpeza e
escritório para a empresa. Ou as contas de luz de todas as unidades (em época
de inverno, pois verão quase dobra). Ou três meses de contas de água. Ou um mês
e meio de telefone e internet. E lembre-se: estamos falando de um aumento de
míseros 100 reais no salário de cada um, o que não dá nem para as compras de
três dias de alimentação numa casa com mais de uma pessoa. E sabe de uma coisa,
amigo? Não há esses 15 mil sobrando na empresa. Quer entender o motivo?
É que gastamos 15 mil mensais de ISS, 7 mil
mensais de COFINS, 2 mil de PIS, 60 mil trimestral de IR, 25 mil trimestral de
CSLL, 5 mil de IR sobre aluguéis, 4 mil de IPTU's, 1 mil de taxas municipais,
35 mil de INSS, 10 mil de FGTS e ainda os impostos indiretos embutidos em cada
produto e serviço. E há retorno para o cidadão? Nós sabemos que não. Ou seja,
estamos jogando dinheiro fora. Dinheiro que poderia ser usado para pagar melhor
os funcionários e fazer mais investimentos na empresa. Sem dúvida mais da
metade do faturamento da empresa vai embora em impostos diretos e indiretos que
não voltam para o cidadão.
E o pior: pagamos duas vezes. O trabalhador do
setor privado recebe pouco porque a empresa é asfixiada pelos impostos e porque
ele mesmo paga muito nos produtos que compra para casa (também pelos impostos).
Na verdade, ele paga mais que duas vezes, pois também paga pela corrosão do seu
dinheiro gerada pela inflação; pelos juros altos necessários quando a inflação
precisa ser controlada; pelos déficits do setor público; pelo aumento da
máquina estatal; pelos empréstimos que o governo pega; pelo dinheiro desviado; pela
ineficiência; pelos serviços privados que é obrigado a usar, já que os públicos
não funcionam direito.
Tem mais. O problema não são só os impostos,
mas a enorme burocracia. É sabido que em diversos países uma pessoa demora um
dia (às vezes, alguns minutos) para abrir e regularizar uma empresa. No Brasil,
a média para isso é superior a 100 dias. Isso para abrir. Para manter é mais
outra dor de cabeça. E eu sinto isso na pele, no setor administrativo da
empresa em que trabalho. Veja um exemplo: uma secretaria municipal exigiu um
monte de documentos para uma unidade continuar funcionando. Juntamos tudo.
Então, se percebeu que o Alvará está com um pequeno erro no endereço. Falta um
andar na descrição. Sabe o que significa? Se não alterar dentro de dez dias, a
unidade não pode prestar alguns serviços no ano que vem inteiro!
Vamos resolver? Vamos! Mas não é tão fácil.
Para mudar o Alvará, é precisa mudar o IPTU. Para mudar o IPTU, o Contrato
Social, o CNPJ e o Certificado dos Bombeiros precisam estar iguais. Cada
documento desse você só altera de posse de outros tantos documentos, em lugares
diferentes, fazendo procedimentos distintos. Todos eles demoram mais de uma
semana para ficar prontos. E alguns têm custos. Para alterar uma frase no
Contrato Social, por exemplo, são mais de 2 mil reais. Em alguns municípios,
para alterar alvará, vão quase mil reais.
Ademais, para fazer tudo isso, você precisa ou
de funcionários próprios à frente do trabalho ou de uma empresa terceirizada.
Nos dois casos, haverão custos e perda de tempo. Você já percebeu que
nesse exemplo que dei, é impossível resolver tudo em dez dias. Ou seja, ano que
vem uma unidade da nossa empresa não poderá oferecer alguns serviços. E por quê?
Por um mísero erro num documento.
Quer outro exemplo? Recentemente fizemos um
financiamento via banco. Muitos documentos são pedidos. Um deles é a
"Certidão de Inexigibilidade Ambiental" que serve para comprovar
que... Não precisamos de uma Certidão Ambiental! O detalhe é que nossa empresa
fica num meio totalmente urbano e seus serviços são meramente educacionais.
Meio óbvio que não destruímos nenhuma floresta ou rio, né? Não para o governo.
Por isso, baixaram uma lei que obriga as empresas que querem empréstimos a
apresentar esse documento. Onde podemos conseguir? Na secretaria de meio
ambiente da prefeitura. Bom, juntei diversos documentos para dar entrada, levei
até lá e esperei um mês para receber uma mísera folha de papel. Razão da
demora? Excesso de pedidos de empresas por esse documento. Por quê? Por causa
da lei inútil que fizeram.
E quando além das leis inúteis e da burocracia,
temos a ineficiência do Estado nos atrapalhando a seguir as próprias leis do
Estado? Há pouco tempo o governo suspendeu sumariamente nossa inscrição
estadual. Como proceder? O site não explica. Busquei um telefone na internet e
liguei para um polo da secretaria da fazenda do estado."Ah, não é aqui.
Tem que ligar para a agência do bairro de vocês", me informou a atendente.
Ela me passou quatro números e avisou que algumas pessoas estavam reclamando sempre
que ninguém atendia. Liguei para os quatro e... Não fui atendido! E aí? Como
resolve o problema?
Imagine o trabalho que é manter em ordem
Inscrição Municipal, Estadual, CNPJ, Contrato Social, IPTU, Alvará, Bombeiros,
Pareceres periódicos de Secretarias Municipais e Ministérios, Certidões, Certificados,
etc. Mude uma coisa e tudo precisa ser mudado. Invente de criar uma filial ou
fechar uma e você morre numa grana e num tempo desgraçado para resolver toda a
documentação. E se deixar de lado e for pego pela fiscalização, será multado e
até proibido de funcionar.
O que muita gente não percebe é que impostos
numerosos e burocracia gigante afetam muito mais as pequenas e médias empresas
(e, por tabela, o cidadão comum) do que as grandes. Para a grande empresa é
fácil pagar um dinheiro sujo para fugir da fiscalização, obter uma facilidade,
acelerar um processo burocrático, comprar favores, obter isenções fiscais
futuramente. Mesmo que ela não use desses expedientes escusos, por ter mais
dinheiro, pode sobreviver com mais facilidade a esse cenário extremamente
regulado da economia. E, sentindo-se muito apertada, pode mais facilmente
aumentar o valor de seus produtos e serviços ou se mudar da cidade, estado ou
país. Mas e as empresas menores? E o cidadão comum?
As empresas menores vão perder muito tempo e
dinheiro para o governo, o que dificultará o seu crescimento e talvez as leve à
bancarrota. E o cidadão comum trabalha nessas empresas. Por essa razão ganhará
pouco, trabalhará muito e eventualmente será demitido. Ele sofrerá porque a
empresa sofre e também sofrerá diretamente nas mãos do governo. Veja esse
exemplo pessoal recente: entrei no bankline do meu banco para pagar uma conta.
Então, fui informado que meu CPF estava bloqueado. Eu não recebi carta ou
telefonema do governo sobre isso. Soube pelo banco, que me avisava: se não
regularizar, pode ter sua conta corrente cancelada.
Fui até uma agência da receita federal ver qual
era problema (já que o site da receita não informa). Lá um funcionário abriu um
programa furreca, que mais parecia um MDOS, com aquela toda preta e sem uso de
mouse. Era ali que se fazia alterações no CPF. E sabe qual era o problema? Não
tinha o número do título de eleitor nos dados do meu cadastro. O número do
título! É um dado que o próprio governo tem! Mas seus órgãos não se comunicam e
quem precisa ir lá resolver o problema sou eu. Algo que, aliás, poderia muito
bem ser resolvido pela internet. Ou seja, trabalho para sustentar alguém que
faz coisas como alterar dados no meu CPF e ganhar o triplo do que ganho, no
mínimo. O procedimento não levou cinco minutos.
Tudo bem, resolvido, né? Não. Por causa da
idiotice do governo, o banco cancelou meu limite bancário. E esse limite sempre
me salvou. Passei um ano vivendo só de limite, quando fiquei desempregado e
estava pagando contas de uma mudança da família. Eu pagava 150 reais de juros
ao mês. Muito dinheiro? Sim! Mas em compensação, eu tinha 5000 reais disponíveis
todo mês, dos quais usava 1500. Sem esse empréstimo constante e ininterrupto,
eu não teria vivido.
Arrumei um emprego e resolvi minhas dividas faz
tempo. Conta azul. Mas deixei o limite lá para emergências, como sempre foi.
Sei controlar limite e cartão de crédito. E para meu contexto, é importante eu
ter essas reservas, que tem ajudado muito em casa com necessidades.
Pois bem. Fui agora correr atrás do banco para
comprovar que resolvi o problema do CPF. Comprovei. Mas para reativar o limite,
precisei comprovar vínculo empregatício, salário, etc. Fiz. Mais quinze dias de
espera. E então... Limite revisto e reduzido para 600 reais. Motivo? País em
crise, o banco oferece menos crédito. Aqui note que o governo é duplamente
culpado. Ele me fez perder limite com a palhaçada do CPF e fez o banco
reduzi-lo por causa da crise.
Explico a crise: os governos Lula e Dilma
inflaram a moeda, derrubaram taxas e incentivaram os bancos a oferecerem
créditos. Com a economia deslanchando, incharam mais ainda o Estado (o que se
tem feito quase ininterruptamente desde Vargas). Mas tudo o que é artificial um
dia acaba mal. Com a volta da valorização do dólar (que se manteve alguns anos
baixo, possibilitando a expansão de moeda brasileira sem aumento de preços), a
inflação começa a aparecer. Daí os juros sobem para conter o problema, como
sempre. Os endividados (empresas e pessoas físicas) se veem com dificuldade de
pagar suas parcelas, a inadimplência sobe e o consumo reduz. Sem consumo,
empresas reduzem os lucros ou vão à falência. Com inadimplência de pessoas e
empresas, bancos reduzem o crédito. E eu acabo perdendo uma reserva que me
servia de garantia.
O meu problema não acaba aí. Com menos
empregados e menos empresas no país, há menos arrecadação. Como o governo
gastou demais, o déficit fica enorme. Resultado: as empresas aumentam os
preços para se manter e o governo aumenta impostos para pagar as dividas que
tem. Quem perde? Mais uma vez eu e meus companheiros do setor privado. A
diferença agora é que nessa pirâmide ridícula, nosso trabalho não suporta mais
a máquina pública. Ela se tornou grande demais, ao mesmo tempo que nós fomos
sufocados ao extremo pelo governo. Agora que entramos em colapso, colapsa
também o setor público.
O sistema não cessa de ser cruel. Porque não é
todo o setor público que sofre, como eu disse. Sofre primeiro quem ganha menos
e trabalha mais. Assim, policiais, bombeiros, professores (sobretudo dos
ensinos fundamental e médio), médicos e enfermeiros serão os primeiros
afetados. O salário e os benefícios dos políticos, seus apadrinhados e todo o
alto escalão do judiciário estão mais que garantidos.
Aqui retorno ao setor privado solapado, a base
desse sistema pútrido. O trabalhador pobre do setor privado, como eu, vê que
nesse setor não vai conseguir um bom salário e estabilidade. Olha então para o
tanto de concursos públicos e se lança nesse caminho. O efeito é devastador.
Perde-se o estímulo de empreender. Perde-se a confiança num crescimento pessoal
no setor privado. Cria-se antipatia pelas empresas particulares, alimentando a
falsa crença de que pagam mal pura e simplesmente por exploração e nada mais. Com
a disparidade entre o emprego público e o privado, cultiva-se um apreço cada
vez maior pelo sonho de estabilidade, salário alto e pouco trabalho. A função
já não importa. A produtividade menos. Se aparecer emprego público para cavar
buraco e depois tampá-lo (o que é inútil para a sociedade), está ótimo! O
importante é ganhar muito dinheiro com isso e nunca ser demitido.
O povo, inebriado da cultura concurseira e
estatista, já não quer produzir. E o vírus contamina até os melhores. Sobretudo
quando lá dentro. Não há pressão, não há risco de falência, não há competição
entre empresas. O sistema produz o ambiente perfeito para que nem os
melhores e mais honestos consigam dar o melhor de si. E nós, do
setor privado, pagamos. O sistema nos envergonha; impõe sobre nós duas opções: ou
mal sobrevivemos, sustentando toda a máquina pública e sendo sufocados, ou
passamos a fazer parte da máquina, sendo sustentados pelo setor privado e
sufocando-o. E todos juntos sustentarão e serão sufocados pela elite política e
judiciária.
O sistema gerará as piores desigualdades e
absurdidades. Quanto mais a máquina pública crescer, mais pagaremos por
funções inúteis, burocracias infindas, benefícios parlamentares, facilidades a
grandes empresas, auxiliares administrativos ganhando dez vezes mais que os do
setor privado e trabalhando dez vezes menos, etc. Pagaremos, por exemplo, por
uma empresa de Correios pública que não entrega mais encomendas em área de
risco (eu não recebo mais encomendas onde moro), atrasa para entregar e gera
déficits de 2 bilhões ao ano. E sonharemos em trabalhar lá. Vergonhoso e
insustentável, sem dúvida. Uma hora a pirâmide não suportará.
Sustentamos milhares de burocracias, regras e
leis complexas; milhares de políticos, cargos comissionados, conselhos,
secretarias e ministérios; centenas de empresas estatais; dezenas de agências
reguladoras; fundo partidário, lei Rouanet, carnaval, times de esportes,
filmes, peças, teses e dissertações sobre inutilidades ou putarias, exposições
de arte degeneradas, obras em países ditatoriais, empréstimos baratos para
grandes empresas e muito mais! Tudo isso está sob nossas costas em forma de
altos tributos, tempo perdido, dor de cabeça e uma consequente economia
impossível de melhorar nossa vida. E o que nos resta? Retroalimentar o sistema
sonhando com um cargo público. Não, não é hipocrisia, mas sobrevivência. E
assim somos obrigados a morrer ou ajudar a matar.
Então, voltamos ao concurso. Para quem não
passa, a vida continua rude. Fica o gosto amargo de quem pagou mais uma taxa
para engordar os bolsos do governo, se submeteu a uma prova que não garante
bons funcionários (apenas elimina gente, já que não dá pra aprovar todo mundo)
e vai continuar tendo seu salário, tempo e vida sugados.
Eu entrei no ônibus com toda aquela gente e
tudo me pareceu ridículo. Não nós. A situação. Ali a maioria estava lutando
para sobreviver, para ter uma vida melhor, mais digna, submetendo-se à triste
realidade de compor o setor que se alimenta de cada um de nós hoje. E assim é a
vida no Brasil. Naquela lata quente, com rodas, todos eram gado. Alguns
deixarão de ser em alguns meses e nos sugarão. Outros continuarão sendo gado e
sendo sugados. E o Estado brasileiro permanecerá inimigo de todo o povo.